23/09/2008
Com o milho norte-americano desviado para a fabricação do etanol, os preços do produto disparam no mercado internacional. Enquanto isso, mudanças climáticas na Austrália, Argentina e Rússia afetam as safras de trigo. Como se não bastasse, o aumento do consumo de carne subtrai importantes reservas cerealistas
Dominique Baillard
Revoltas populares questionam o alto custo de vida em Burquina Faso e na República dos Camarões. Manifestações contra o valor do pão ganharam as ruas do Senegal e do Egito. Observadores internacionais como Jean Ziegler, há até pouco tempo relator especial das Nações Unidas pelo direito à alimentação, evocam o temor da falta de alimentos no Oeste do continente negro [1]. A ONU, por sua vez, classifica o aumento mundial dos preços dos cereais como um “tsunami silencioso”, que pode deixar cem milhões de pessoas famintas.
Até nos países industrializados a segurança alimentar voltou a ser motivo de preocupação. No Reino Unido, por exemplo, onde a agricultura foi sacrificada no altar da revolução industrial [2], o departamento encarregado dos negócios rurais, alimentação e meio ambiente está alarmado com as ameaças em vista [3].
A alta de preços já era evidente em agosto do ano passado, quando os agricultores do hemisfério Norte realizaram sua colheita e as cotações de grãos simplesmente duplicaram. Na Câmara de Comércio de Chicago, referência para o mercado mundial de cereais, a tonelada do trigo passou de 200 dólares para 400 dólares. O mesmo cenário pôde ser visto em Paris, onde o preço do trigo moído atingiu seu ápice no começo do mês de setembro e chegou a 300 euros por tonelada. No decorrer de março deste ano, quando os Estados Unidos haviam quase esgotado sua capacidade de exportação, os preços continuaram a subir. Em doze meses, o valor do trigo aumentou 130% no mercado de futuros americano! Surpreendidas, as indústrias de moagem e os fabricantes de massa e de alimentos destinados ao gado protestaram com veemência nos países desenvolvidos.
De fato, houve um rompimento do equilíbrio precário entre oferta e procura. O fenômeno ocorreu em função de dois acontecimentos. O primeiro deles foi o aumento da demanda gerado pelo boom dos biocombustíveis [4]. Sua fabricação passou a absorver 10% da produção mundial de milho, e de acordo com o Instituto de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI), sediado em Washington, a situação tende a se agravar: a indústria de etanol poderá fazer o preço do milho subir até 2020 entre 25% e 72%, na previsão mais alarmista. A variação dependerá fundamentalmente dos Estados Unidos, principal fabricante de biocombustíveis do mundo [5].
A segunda ocorrência está relacionada às mudanças climáticas, tais como a seca na Austrália, a geada na Argentina e a falta de sol e o excesso de água na Europa, que interferiram negativamente na colheita. Tanto o etanol quanto as alterações do clima carregam em seu paroxismo as tensões causadas pela demanda crescente de populações inteiras, como a chinesa.
Outro fator que devemos levar em conta é que somos cada vez mais carnívoros. O crescimento econômico dos países emergentes, associado à urbanização, modificou profundamente o comportamento alimentar da humanidade. Os chineses, por exemplo, consumiram cinco vezes mais carne em 2005 que em 1980. Como são necessários três quilos de grãos para produzir um quilo de carne de ave, e mais que o dobro para se obter a mesma quantidade de carne bovina, para dar conta da demanda é preciso aumentar a produção dos cereais forrageiros e os oleaginosos, integrantes da dieta básica dos animais.
Com isso, as exportações mundiais de trigo triplicaram nos últimos cinqüenta anos [6]. O Egito, celeiro da Roma antiga, tornou-se o principal consumidor das colheitas estrangeiras. Na região do Mediterrâneo, assim como na África subsaariana, o crescimento das importações a preços baixos durante décadas de abundância praticamente asfixiou a agricultura local e a “conta alimentar” desses países tornou-se exorbitante. Em um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em junho de 2007, o economista Adam Prakash estimava que as importações alimentares vão custar 90% a mais que em 2000 para as nações menos avançadas [7]. Apenas entre 2006 e 2007, a “conta alimentar” cresceu um terço na África e até 50% nos países mais dependentes.
Os grandes produtores são os mais favorecidos com essa situação. O maior deles, os Estados Unidos, registrou uma receita agrícola recorde: 85 bilhões de dólares no ano passado. De acordo com as estimativas do Ministério da Agricultura americano, o crescimento em 2008 parece ainda mais promissor. Entre os países emergentes tradicionalmente exportadores, tais como a Argentina [8] e a Rússia, a crise não passou incólume e gerou inflação. A solução encontrada foi erigir barreiras para manter os preços locais em níveis razoáveis, o que gerou mais expectativa no comércio global.
Na outra ponta da cadeia estão os países em desenvolvimento. Essencialmente importadores, eles enfrentam inúmeros levantes populares, como os que irromperam no México [9], no Senegal, no Marrocos e na Mauritânia. Afinal, se o aumento da cesta básica é suportável nas economias desenvolvidas, em que a alimentação não representa mais que 14% dos gastos, ele se torna inadministrável na África subsaariana, onde os gastos com alimentos consomem 60% da renda. Expostas, essas nações recorrem às subvenções quando suas finanças permitem. Em setembro de 2007, por exemplo, o aumento do preço do pão imposto pelo sindicato dos padeiros provocou violentas manifestações no Marrocos. Temendo que a revolta popular degenerasse em convulsão social, o governo tunisiano chegou a pedir aos padeiros que reduzissem o peso do produto, para evitar a alta. Por fim, o Estado preferiu suspender as diversas taxas sobre a importação para aliviar o custo das empresas de moagem.
Mais um problema enfrentado pela África é o corte de ajuda alimentar vinda do exterior. “Quando o preço do trigo aumenta, o auxílio diminui. A generosidade dos países do Norte se expressa apenas quando eles dispõem de excedentes para doação, que na verdade contribuem para baixar os estoques e manter os preços”, observa Marc Dufumier, especialista em agricultura comparada. Os números publicados pelo Conselho Internacional de Cereais [10] confirmam: no decorrer de 2005-2006, 8,3 milhões de toneladas de grãos foram enviadas como ajuda alimentar. Já em 2006-2007, foram 7,4 milhões e este ano o auxílio deverá cair para 6 milhões de toneladas.
As revoltas relacionadas à fome, portanto, não estão perto de se extinguir: uma vez que a oferta não irá satisfazer a demanda, os preços continuarão sua escalada. Para reverter a tendência, os governos poderiam recorrer ao “imperativo do consumo cidadão”, como sugerido por um colunista tunisiano [11], e pedir à população que ingerisse menos cuscuz, menos pão e, principalmente, menos carne. Mas o apelo tem poucas chances de obter apoio nos países onde a dieta básica começa a melhorar. É o caso da China, onde Ministério da Saúde está estimulando as mulheres a consumirem laticínios para absorver mais cálcio. Ora, quando falamos de leite, falamos não só de gado, mas também de oleaginosas e cereais para sua nutrição.
É preciso contar igualmente com o fenômeno especulativo. “Seja um agente da volatilidade dos mercados agrícolas, não um mero espectador”, aconselhava, no final de 2007, a Financeagri, empresa francesa de informações especializada em matérias-primas agrícolas. Esta oferta comercial ilustra a revolução em curso nos mercados de futuros agrícolas. Inicialmente criados para cobrir o risco da variação de preços, eles se tornaram terrenos de caça apreciados pelos especuladores.
Os índices agrícolas, que refletem a evolução das cotações, fazem sucesso. No momento em que os mercados de cereais dispararam, quintuplicou o volume de capitais gerados pelos fundos de investimentos cotados sobre os produtos agrícolas europeus, passando de 156 milhões de dólares para 911 milhões de dólares, segundo a Barca, filial do banco britânico Barclays [12]. De acordo com a mesma fonte, os empréstimos contraídos dos fundos investidos nos mercados agrícolas americanos deram um salto ainda maior, multiplicando-se por sete entre o primeiro e o último trimestres de 2007.
Um outro fator seduziu os investidores: a convergência entre os preços dos produtos energéticos e dos cereais destinados à indústria de biocombustíveis. Nessa atmosfera eufórica, os agricultores também procuram maximizar seus lucros. Na França, muitos contratos não foram honrados, especialmente para a entrega do trigo moído e da cevada, já que os produtores venderam a colheita diretamente aos industriais. Uma atitude bem compreensível, reconhece Philippe Mangin, presidente da Coop de France [13]: “os camponeses nunca depararam com tamanha volatilidade e as cotações triplicaram em quinze meses! É de perder a cabeça, principalmente após três anos de vacas magras”. Por isso mesmo, segundo as estimativas do Conselho Internacional de Cereais, a superfície de trigo plantada na França deverá aumentar em 4% em 2008.
“A terra é um investimento promissor”, assegura o investidor britânico Jim Slater. Após ter feito fortuna no mercado de metais, ele redirecionou seu foco para a agricultura, privilegiando os investimentos nos programas de irrigação. As vastas estepes da Sibéria Oriental, na Rússia, e as terras negras da Ucrânia estão bem cotadas por sua vocação para desenvolver cultivos em larga escala, embora um pouco prejudicadas pelo clima continental, principalmente pelas geadas. Em contrapartida, na América do Sul, a Argentina e o Brasil podem transformar o pampa e as florestas em terras cultiváveis. “Ainda há ganhos de produtividade dos quais as pessoas nem se dão conta”, estima Marc Dufumier. Sem dúvida, as duas nações guardam o futuro da agricultura de exportação, onde os custos de produção são mais baixos que na Europa e nos Estados Unidos e os rendimentos ainda estão incipientes. Mas, como sempre, o desenvolvimento pode trazer conseqüências perversas, como a generalização dos organismos geneticamente modificados (OGM), onipresentes na Argentina, e o aumento do desflorestamento no Brasil.
Para as nações mais afetadas pelo choque dos cereais, a opção é mais radical ainda: passa por um verdadeiro renascimento de sua agricultura. O Mali já está a salvo, graças aos investimentos na produção de arroz no delta do rio Níger e ao bom senso dos cultivadores de algodão. Decepcionados com a deterioração do preço oferecido pelas empresas algodoeiras, eles utilizaram os insumos alocados a essa cultura para suas sementes de sorgo ou de milho. No vizinho Burquina Faso, os campos de soja também substituíram vantajosamente o produto.
Assim, o aquecimento dos cereais colocou novamente em pauta a questão do papel da agricultura no desenvolvimento. Ironia da história, o Banco Mundial, que contribuiu para enfraquecer os cultivos nos países ao impor a liberalização da economia, incluiu esse setor no centro dos esforços da luta contra a pobreza em seu relatório de 2008.
[1] Ler Jean Ziegler, disponível no site.
[2] Entre 1770 e l870, esse setor reduziu sua participação na renda nacional de 45 % para 14 %.
[3] Leia o estudo, publicado em dezembro de 2006, está disponível em Com o aquecimento das matérias-primas agrícolas, a segurança alimentar tornou-se um tema recorrente nas intervenções das autoridades políticas britânicas. Ler Jenny Wiggins e Javier Blas, Financial Times, Londres, 24 de outubro de 2007.
[4] Eric Holtz-Giménez, “Les cinq mythes de la transition vers les agrocarburants”, Le Monde diplomatique, junho de 2007.
[5] 5 Se for aplicada a lei sobre energia, votada pelo Congresso americano no final de 2007, será necessário injetar de 100 a 110 milhões de toneladas de milho nas destilarias em 2008, contra os 81 milhões de toneladas no ano anterior. Sabendo que os Estados Unidos produzem 40 % do milho mundial e cerca da metade do volume exportado, qualquer variação de sua colheita abala o mercado internacional de cereais. O Brasil é o segundo maior fabricante, mas baseia sua produção na cana-de-açúcar.
[6] O trigo é consumido em quase todas as partes. Suas propriedades físicas fazem dele o único cereal panificável: ele é insubstituível na fabricação do pão, das massas e do cuscuz. É o cereal mais comercializado e seus maiores exportadores são os Estados Unidos, a União Européia, a Austrália, o Canadá e a Argentina.
[7] Perspectivas da alimentação 2007, Roma, 7 de junho de 2007.
[8] No decorrer de março, o governo de Cristina Kirchner anunciou o aumento em quase 9% do imposto sobre as exportações de soja, girassol, milho e trigo. Considerando que o aumento dos preços da soja (70% em 2007) justifica essa alta, o governo pretende utilizá-lo para redistribuir as riquezas para os setores mais pobres. A medida provocou duas semanas de greves e protesto de grandes proprietários e agricultores, acarretando uma carestia organizada de alimentos nas cidades.
[9] Ler Anne Vigna, “Sem tortillas nem empregos”, Le Monde diplomatique Brasil, edição 9.
[10] O Conselho Internacional de Cereais agrupa todos os signatários da Convenção sobre o comércio de cereais. Ele realiza duas sessões ordinárias a cada ano, geralmente em junho e em dezembro. Tem o papel de fiscalizar o cumprimento da convenção, de debater a evolução e a orientação dos mercados cerealistas mundiais e de assegurar o acompanhamento das modificações feitas nas políticas cerealistas nacionais e suas eventuais implicações. Ver o site.
[11] Larbi Chennaoui, La presse de Tunisie, Tunis, novembro de 2007.
[12] Estudo trimestral The Commodity Refiner consagrado aos mercados de matérias primas.
[13] Leia mais
“Le Monde diplomatique”
Extraído de: Blog Controvérsia, 23/09/2008
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
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