A imprensa endeusa o agronegócio, sem destacar que ele proporciona apenas 500.000 empregos
Desde que o governo Lula assumiu o mandato, estranhamente a imprensa brasileira, de forma unânime, tem se dedicado cotidianamente a pregar loas ao sucesso do agronegócio.
Por que essa campanha unificada, permanente, logo agora? Uma das explicações pode ser a influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica. Outra explicação pode ser a tentativa de impedir que o governo se anime a fazer uma reforma agrária massiva. E, assim, pregam que o único caminho para resolver os problemas da pobreza e da falta de emprego no campo seria o modelo do agronegócio.
Ora, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.
20 milhões sem sapatos
A imprensa brasileira, monopolizada por sete grupos e claramente vinculada aos interesses de classe dos grandes proprietários e das empresas transnacionais exportadoras de matérias-primas, faz o seu papel de propaganda. Mostra todos os dias máquinas agrícolas novinhas, navios carregados e índices de exportação agrícola, como se isso fosse sinônimo de soluções econômicas e sociais. E esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta.
Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!
Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.
Porque o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.
Mas queria aproveitar a paciência de vocês para mostrar que, mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Vamos aos dados estatísticos, resultados desse modelo agrícola cantado em prosa e verso.
O Brasil tem aproximadamente 350 milhões de hectares agricultáveis, que poderiam ser dedicados à lavoura. Mas, graças à concentração da propriedade da terra, cultivamos 50 milhões de hectares, apenas 14 por cento do que deveríamos cultivar. E essa área cultivada permanece estável desde 1985.
As fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento dessa área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse de colocar na mesa apenas esses produtos!
E existe outra parcela de estabelecimentos agrícolas, que fazem parte desse modelo, piores ainda, pois se dedicam apenas à pecuária extensiva ou a especular com a renda da terra. Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como “grandes propriedades improdutivas”, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares (uma Europa inteira parada...).
A falácia da modernidade
O Plano Nacional de Reforma Agrária aplicou a conceituação da Lei Agrária e dividiu todas as propriedades existentes entre pequenas (até 200 hectares, em média), médias (de 200 a 2.000 hectares) e grandes propriedades (acima de 2.000 hectares). E depois analisou o comportamento dos fatores de produção em relação a cada setor.
Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.
A famosa modernidade capitalista é uma falácia, 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores. Ou seja, a tal grande propriedade “moderna” não consegue nem ativar a indústria nacional de tratores. Por essa razão é que faz vinte anos que a demanda de tratores não aumenta. A indústria está vendendo em torno de 50.000 tratores por ano, enquanto no início da década de 80 chegou a vender 65.000.
Mas na hora de utilizar o crédito rural, dos bancos oficiais, com recursos públicos e taxas de juros diferenciadas, pode-se ver também os diferentes interesses. Na última safra (2003/04), a pequena propriedade teve acesso a 3 bilhões de reais, e a média e grande propriedade utilizaram 24 bilhões de reais do Banco do Brasil. E, o que é pior, apenas dez empresas transnacionais ligadas ao agronegócio pegaram no Banco do Brasil 4 bilhões de dinheiro público, brasileiro. Dez empresas transnacionais acessaram mais crédito do que todos os 4 milhões de famílias de pequenos agricultores. E ainda tem gente que acredita que as empresas transnacionais vêm aqui aplicar capital estrangeiro. Ao contrário, elas vêm acessar a nossa poupança nacional. Estamos financiando essas empresas estrangeiras, e a imprensa bate palmas!
Em termos dos resultados da produção, segundo o IBGE, a grande propriedade representa apenas 13,6 por cento de toda a produção, 29,6 por cento a média propriedade e 56,6 por cento de toda produção agropecuária nacional vem da agricultura familiar. E, por ramos de produção, é ainda mais claro a que interesses cada segmento defende. Mesmo na produção animal, a pequena propriedade representa 60 por cento de toda a produção, em função da produção de leite, de suínos e aves.
No quesito assalariados rurais, que é o símbolo do capitalismo, a média propriedade dá emprego para 1 milhão de pessoas, a grande propriedade para apenas 500.000. E, mesmo sendo familiar, a pequena propriedade dá emprego, além de aos seus familiares, para quase 1 milhão de assalariados rurais.
Desvio vem da colônia
O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas. E no caso brasileiro é ainda pior, pois quem está ganhando dinheiro com as exportações agrícolas são as transnacionais, como a Monsanto, a Cargill, a Bunge, a ADM, que controlam o comércio agrícola mundial. Elas têm um lucro médio de 28 por cento sobre o valor exportado, sem produzir um grão sequer.
Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo. Se todo o povo brasileiro tivesse renda para se alimentar direito, haveria uma demanda nacional infinitamente superior ao que hoje é exportado. A solução é dar condições para o povo comprar comida.
Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.
Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.
João Pedro Stedile
Revista Caros Amigos junho de 2004
Extraído de Geografia Geral e do Brasil
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