28/09/08
Texto Tarso Araújo
As plantas e animais que comemos existiam antes mesmo de o homem abandonar o visual de macaco. De lá pra cá, o que mudou é como obtemos e preparamos as refeições. A história da comida evoluiu, dentada a dentada, junto com nosso poder de transformar o mundo
Antiguidade - 7 000 A.C.
Carnes - Carneiro / Há cerca de 10 mil anos, nômades desenvolveram a pecuária. E o carneiro, fonte de carne, leite e lã, era um dos animais mais úteis aos primeiros pastores da humanidade.
Cereais - Trigo / A agricultura nos deu grãos em quantidade. Para se transformarem em alimento, eram cozidos ou empapados. Também iam ao forno, de onde saíam em forma de pão.
Frutas e Legumes - Maçã / Frutas eram fontes valiosas de açúcar – e a maçã foi das primeiras a ser plantadas. Sempre ligada à sensualidade, seu gosto doce virou símbolo de pecado.
Bebidas - Cerveja / A fermentação foi descoberta ao mesmo tempo que a agricultura. Da cevada fazia-se a cerveja, mais popular que a água por não trazer riscos de contaminação.
Temperos - Sal / Antes mesmo de colocar o animal na cerca, o homem aprendeu que o sal, obtido em salmouras naturais, conservava a carne da caça.
Era clássica - Séc. 4 A.C.
Carnes - Porco / No século 3, era o item mais importante da “cesta básica” que Roma dava aos cidadãos. A gordura servia para temperar. No prato, a preferência era para as tetas e a vulva da porca.
Cereais - Macarrão / Povos do Mediterrâneo misturavam farinha e água para fazer o macco. Na Sicília, a massa passou a ser seca, cortada e cozida. Ganhou o nome de maccaruni – isso bem antes de Marco Polo existir.
Frutas e Legumes - Azeitona / Os gregos usavam o óleo para comer e tomar banho. Durante suas campanhas Alexandre, o Grande, difundiu o uso do azeite. Depois, lucrou pesado com as exportações.
Bebidas - Água / Roma inovou ao distribuí-la por chafarizes e aquedutos. Como a qualidade era duvidosa, os romanos preferiam a calda, fervida e vendida em tavernas, e a posca, desinfetada com vinagre.
Temperos - Mel / Primeiro adoçante conhecido pelo homem, era exclusividade dos banquetes reais na Mesopotâmia. Mas os gregos o fizeram parte da refeição comum, servido com queijo e pão.
Idade média - Séc. 6
Carnes - Boi / Agradeça a existência da picanha à invenção do arado de rodas. Antes dele, o boi era mais caro à agricultura do que ao prato - em Roma, o bovicídio e homicídio era punidos com a mesma pena.
Cereais - Aveia / Popularizou-se na crise demográfica da Europa, no século 13, quando o lema era aproveitar ao máximo a terra. Cultivada na entressafra do trigo, alimentava bois que depois alimentavam homens.
Frutas e Legumes - Melancia / Como a berinjela, foi apresentada ao Ocidente pelo árabes que ocuparam a Europa entre os séculos 7 e 15. Seu suco refrescante fez sucesso instantâneo.
Bebidas - Vinho / Vinhos de frutas eram feitos desde a Antiguidade. Mas bastou a versão de uva aparecer nos relatos da Santa Ceia para ela ganhar status mundial como a mais nobre entre as bebidas.
Temperos - Açafrão / A dificuldade de plantar especiarias no frio da Europa nutriu séculos de comércio com o Oriente. Rara exceção, o açafrão foi adaptado pelos árabes ao clima da península Ibérica.
Navegações - Séc. 15
Carnes - Peru / Para quem comia até garça nos castelos medievais, a descoberta dessa ave carnuda foi motivo de festa. Vindo do Novo Mundo, foi uma das últimas aves a se difundirem como alimento no planeta.
Cereais - Milho / O grão que era pilar da alimentação na América caiu no gosto de camponeses europeus com pouca terra e muitas bocas para alimentar. O segredo: rendia 10 vezes mais que o trigo.
Frutas e Legumes - Batata / Natural dos Andes, era considerada comida para porcos na Europa. Só fez sucesso no século 18, quando foi adaptada à Irlanda – que sofria para plantar legumes no clima frio.
Bebidas - Chocolate, café e chá / As grandes navegações popularizaram na Europa – e daí no resto do mundo – bebidas “exóticas”. Entre as mais populares estavam o chocolate americano, o café africano e o chá do Oriente.
Temperos - Especiarias / Como o ouro e a prata, as especiarias empurraram os europeus aos mares. A coragem foi recompensada com a maior moda de pratos com cravo e canela que já se viu na Europa.
Rev. Industrial - Séc. 19
Carnes - Peixe / Os primeiros refrigeradores foram logo adaptados para cargueiros e revolucionaram o consumo de peixe – em quantidade e variedade – fazendo-o chegar até a quem não estava perto de mares ou rios.
Cereais - Baguete / Necessidade e conseqüência da Revolução Industrial: por um lado, era preciso muito pão para alimentar os operários; por outro, só os fornos industriais inventados na época permitiam sua produção em série.
Frutas e Legumes - Tomate / Fábricas de conservas surgiram em 1804 e logo a Itália as usava para produzir extrato de tomate. Só então o fruto da América Central, ainda restrito ao Mediterrâneo, foi apresentado ao mundo .
Bebidas - Leite / Com a fabricação de geladeiras e a invenção da pasteurização, o leite podia ser levado a qualquer lugar – especialmente centros urbanos, onde sobravam operários e faltava espaço para as vacas.
Temperos - Açúcar / O comércio do açúcar de cana era dominado pelos ingleses. Para brigar com os rivais, Napoleão financiou a técnica descoberta na Áustria de extração de açúcar da beterraba, usada até hoje na Europa.
Era Moderna - Séc. 20
Carnes - Hambúrguer / No século 20, a praticidade passou a ser tão valorizada quanto os ingredientes. E o hambúrguer, servido diretamente na janela dos carros, foi o marco fundador do fast food.
Cereais - Pizza / Pães chatos com tempero eram feitos desde a Antiguidade. Mas a pizza se popularizou no século 19, para incentivar o consumo do extrato de tomate, principal produto da indústria alimentícia italiana.
Frutas e Legumes - Bananas / Até 1870, não existiam nos EUA. Então uma empresa passou a importá-las da América Central. Três décadas depois, o país consumia 16 milhões de cachos/ano. E o “boom” da banana ganhou o mundo.
Bebidas - Refrigerantes / A primeira marca surgiu em 1871, vendida como remédio. Mas logo os fabricantes notaram que esse apelo era desnecessário: sabor e praticidade garantiriam o sucesso da bebida.
Temperos - Ketchup / A receita atual é obra da Heinz. Em 1875, a empresa lançou em embalagem higiênica esse molho moderno, que dá gosto à comida sem complicar o trabalho da cozinheira.
“SUPERINTERESSANTE"
Extraído do Blog Controvérsia
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
A quem interessa o modelo agrícola do agronegócio
A imprensa endeusa o agronegócio, sem destacar que ele proporciona apenas 500.000 empregos
Desde que o governo Lula assumiu o mandato, estranhamente a imprensa brasileira, de forma unânime, tem se dedicado cotidianamente a pregar loas ao sucesso do agronegócio.
Por que essa campanha unificada, permanente, logo agora? Uma das explicações pode ser a influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica. Outra explicação pode ser a tentativa de impedir que o governo se anime a fazer uma reforma agrária massiva. E, assim, pregam que o único caminho para resolver os problemas da pobreza e da falta de emprego no campo seria o modelo do agronegócio.
Ora, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.
20 milhões sem sapatos
A imprensa brasileira, monopolizada por sete grupos e claramente vinculada aos interesses de classe dos grandes proprietários e das empresas transnacionais exportadoras de matérias-primas, faz o seu papel de propaganda. Mostra todos os dias máquinas agrícolas novinhas, navios carregados e índices de exportação agrícola, como se isso fosse sinônimo de soluções econômicas e sociais. E esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta.
Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!
Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.
Porque o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.
Mas queria aproveitar a paciência de vocês para mostrar que, mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Vamos aos dados estatísticos, resultados desse modelo agrícola cantado em prosa e verso.
O Brasil tem aproximadamente 350 milhões de hectares agricultáveis, que poderiam ser dedicados à lavoura. Mas, graças à concentração da propriedade da terra, cultivamos 50 milhões de hectares, apenas 14 por cento do que deveríamos cultivar. E essa área cultivada permanece estável desde 1985.
As fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento dessa área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse de colocar na mesa apenas esses produtos!
E existe outra parcela de estabelecimentos agrícolas, que fazem parte desse modelo, piores ainda, pois se dedicam apenas à pecuária extensiva ou a especular com a renda da terra. Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como “grandes propriedades improdutivas”, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares (uma Europa inteira parada...).
A falácia da modernidade
O Plano Nacional de Reforma Agrária aplicou a conceituação da Lei Agrária e dividiu todas as propriedades existentes entre pequenas (até 200 hectares, em média), médias (de 200 a 2.000 hectares) e grandes propriedades (acima de 2.000 hectares). E depois analisou o comportamento dos fatores de produção em relação a cada setor.
Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.
A famosa modernidade capitalista é uma falácia, 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores. Ou seja, a tal grande propriedade “moderna” não consegue nem ativar a indústria nacional de tratores. Por essa razão é que faz vinte anos que a demanda de tratores não aumenta. A indústria está vendendo em torno de 50.000 tratores por ano, enquanto no início da década de 80 chegou a vender 65.000.
Mas na hora de utilizar o crédito rural, dos bancos oficiais, com recursos públicos e taxas de juros diferenciadas, pode-se ver também os diferentes interesses. Na última safra (2003/04), a pequena propriedade teve acesso a 3 bilhões de reais, e a média e grande propriedade utilizaram 24 bilhões de reais do Banco do Brasil. E, o que é pior, apenas dez empresas transnacionais ligadas ao agronegócio pegaram no Banco do Brasil 4 bilhões de dinheiro público, brasileiro. Dez empresas transnacionais acessaram mais crédito do que todos os 4 milhões de famílias de pequenos agricultores. E ainda tem gente que acredita que as empresas transnacionais vêm aqui aplicar capital estrangeiro. Ao contrário, elas vêm acessar a nossa poupança nacional. Estamos financiando essas empresas estrangeiras, e a imprensa bate palmas!
Em termos dos resultados da produção, segundo o IBGE, a grande propriedade representa apenas 13,6 por cento de toda a produção, 29,6 por cento a média propriedade e 56,6 por cento de toda produção agropecuária nacional vem da agricultura familiar. E, por ramos de produção, é ainda mais claro a que interesses cada segmento defende. Mesmo na produção animal, a pequena propriedade representa 60 por cento de toda a produção, em função da produção de leite, de suínos e aves.
No quesito assalariados rurais, que é o símbolo do capitalismo, a média propriedade dá emprego para 1 milhão de pessoas, a grande propriedade para apenas 500.000. E, mesmo sendo familiar, a pequena propriedade dá emprego, além de aos seus familiares, para quase 1 milhão de assalariados rurais.
Desvio vem da colônia
O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas. E no caso brasileiro é ainda pior, pois quem está ganhando dinheiro com as exportações agrícolas são as transnacionais, como a Monsanto, a Cargill, a Bunge, a ADM, que controlam o comércio agrícola mundial. Elas têm um lucro médio de 28 por cento sobre o valor exportado, sem produzir um grão sequer.
Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo. Se todo o povo brasileiro tivesse renda para se alimentar direito, haveria uma demanda nacional infinitamente superior ao que hoje é exportado. A solução é dar condições para o povo comprar comida.
Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.
Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.
João Pedro Stedile
Revista Caros Amigos junho de 2004
Extraído de Geografia Geral e do Brasil
Desde que o governo Lula assumiu o mandato, estranhamente a imprensa brasileira, de forma unânime, tem se dedicado cotidianamente a pregar loas ao sucesso do agronegócio.
Por que essa campanha unificada, permanente, logo agora? Uma das explicações pode ser a influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica. Outra explicação pode ser a tentativa de impedir que o governo se anime a fazer uma reforma agrária massiva. E, assim, pregam que o único caminho para resolver os problemas da pobreza e da falta de emprego no campo seria o modelo do agronegócio.
Ora, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.
20 milhões sem sapatos
A imprensa brasileira, monopolizada por sete grupos e claramente vinculada aos interesses de classe dos grandes proprietários e das empresas transnacionais exportadoras de matérias-primas, faz o seu papel de propaganda. Mostra todos os dias máquinas agrícolas novinhas, navios carregados e índices de exportação agrícola, como se isso fosse sinônimo de soluções econômicas e sociais. E esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta.
Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!
Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.
Porque o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.
Mas queria aproveitar a paciência de vocês para mostrar que, mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Vamos aos dados estatísticos, resultados desse modelo agrícola cantado em prosa e verso.
O Brasil tem aproximadamente 350 milhões de hectares agricultáveis, que poderiam ser dedicados à lavoura. Mas, graças à concentração da propriedade da terra, cultivamos 50 milhões de hectares, apenas 14 por cento do que deveríamos cultivar. E essa área cultivada permanece estável desde 1985.
As fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento dessa área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse de colocar na mesa apenas esses produtos!
E existe outra parcela de estabelecimentos agrícolas, que fazem parte desse modelo, piores ainda, pois se dedicam apenas à pecuária extensiva ou a especular com a renda da terra. Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como “grandes propriedades improdutivas”, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares (uma Europa inteira parada...).
A falácia da modernidade
O Plano Nacional de Reforma Agrária aplicou a conceituação da Lei Agrária e dividiu todas as propriedades existentes entre pequenas (até 200 hectares, em média), médias (de 200 a 2.000 hectares) e grandes propriedades (acima de 2.000 hectares). E depois analisou o comportamento dos fatores de produção em relação a cada setor.
Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.
A famosa modernidade capitalista é uma falácia, 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores. Ou seja, a tal grande propriedade “moderna” não consegue nem ativar a indústria nacional de tratores. Por essa razão é que faz vinte anos que a demanda de tratores não aumenta. A indústria está vendendo em torno de 50.000 tratores por ano, enquanto no início da década de 80 chegou a vender 65.000.
Mas na hora de utilizar o crédito rural, dos bancos oficiais, com recursos públicos e taxas de juros diferenciadas, pode-se ver também os diferentes interesses. Na última safra (2003/04), a pequena propriedade teve acesso a 3 bilhões de reais, e a média e grande propriedade utilizaram 24 bilhões de reais do Banco do Brasil. E, o que é pior, apenas dez empresas transnacionais ligadas ao agronegócio pegaram no Banco do Brasil 4 bilhões de dinheiro público, brasileiro. Dez empresas transnacionais acessaram mais crédito do que todos os 4 milhões de famílias de pequenos agricultores. E ainda tem gente que acredita que as empresas transnacionais vêm aqui aplicar capital estrangeiro. Ao contrário, elas vêm acessar a nossa poupança nacional. Estamos financiando essas empresas estrangeiras, e a imprensa bate palmas!
Em termos dos resultados da produção, segundo o IBGE, a grande propriedade representa apenas 13,6 por cento de toda a produção, 29,6 por cento a média propriedade e 56,6 por cento de toda produção agropecuária nacional vem da agricultura familiar. E, por ramos de produção, é ainda mais claro a que interesses cada segmento defende. Mesmo na produção animal, a pequena propriedade representa 60 por cento de toda a produção, em função da produção de leite, de suínos e aves.
No quesito assalariados rurais, que é o símbolo do capitalismo, a média propriedade dá emprego para 1 milhão de pessoas, a grande propriedade para apenas 500.000. E, mesmo sendo familiar, a pequena propriedade dá emprego, além de aos seus familiares, para quase 1 milhão de assalariados rurais.
Desvio vem da colônia
O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas. E no caso brasileiro é ainda pior, pois quem está ganhando dinheiro com as exportações agrícolas são as transnacionais, como a Monsanto, a Cargill, a Bunge, a ADM, que controlam o comércio agrícola mundial. Elas têm um lucro médio de 28 por cento sobre o valor exportado, sem produzir um grão sequer.
Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo. Se todo o povo brasileiro tivesse renda para se alimentar direito, haveria uma demanda nacional infinitamente superior ao que hoje é exportado. A solução é dar condições para o povo comprar comida.
Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.
Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.
João Pedro Stedile
Revista Caros Amigos junho de 2004
Extraído de Geografia Geral e do Brasil
Tumulto na produção mundial de cereais
23/09/2008
Com o milho norte-americano desviado para a fabricação do etanol, os preços do produto disparam no mercado internacional. Enquanto isso, mudanças climáticas na Austrália, Argentina e Rússia afetam as safras de trigo. Como se não bastasse, o aumento do consumo de carne subtrai importantes reservas cerealistas
Dominique Baillard
Revoltas populares questionam o alto custo de vida em Burquina Faso e na República dos Camarões. Manifestações contra o valor do pão ganharam as ruas do Senegal e do Egito. Observadores internacionais como Jean Ziegler, há até pouco tempo relator especial das Nações Unidas pelo direito à alimentação, evocam o temor da falta de alimentos no Oeste do continente negro [1]. A ONU, por sua vez, classifica o aumento mundial dos preços dos cereais como um “tsunami silencioso”, que pode deixar cem milhões de pessoas famintas.
Até nos países industrializados a segurança alimentar voltou a ser motivo de preocupação. No Reino Unido, por exemplo, onde a agricultura foi sacrificada no altar da revolução industrial [2], o departamento encarregado dos negócios rurais, alimentação e meio ambiente está alarmado com as ameaças em vista [3].
A alta de preços já era evidente em agosto do ano passado, quando os agricultores do hemisfério Norte realizaram sua colheita e as cotações de grãos simplesmente duplicaram. Na Câmara de Comércio de Chicago, referência para o mercado mundial de cereais, a tonelada do trigo passou de 200 dólares para 400 dólares. O mesmo cenário pôde ser visto em Paris, onde o preço do trigo moído atingiu seu ápice no começo do mês de setembro e chegou a 300 euros por tonelada. No decorrer de março deste ano, quando os Estados Unidos haviam quase esgotado sua capacidade de exportação, os preços continuaram a subir. Em doze meses, o valor do trigo aumentou 130% no mercado de futuros americano! Surpreendidas, as indústrias de moagem e os fabricantes de massa e de alimentos destinados ao gado protestaram com veemência nos países desenvolvidos.
De fato, houve um rompimento do equilíbrio precário entre oferta e procura. O fenômeno ocorreu em função de dois acontecimentos. O primeiro deles foi o aumento da demanda gerado pelo boom dos biocombustíveis [4]. Sua fabricação passou a absorver 10% da produção mundial de milho, e de acordo com o Instituto de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI), sediado em Washington, a situação tende a se agravar: a indústria de etanol poderá fazer o preço do milho subir até 2020 entre 25% e 72%, na previsão mais alarmista. A variação dependerá fundamentalmente dos Estados Unidos, principal fabricante de biocombustíveis do mundo [5].
A segunda ocorrência está relacionada às mudanças climáticas, tais como a seca na Austrália, a geada na Argentina e a falta de sol e o excesso de água na Europa, que interferiram negativamente na colheita. Tanto o etanol quanto as alterações do clima carregam em seu paroxismo as tensões causadas pela demanda crescente de populações inteiras, como a chinesa.
Outro fator que devemos levar em conta é que somos cada vez mais carnívoros. O crescimento econômico dos países emergentes, associado à urbanização, modificou profundamente o comportamento alimentar da humanidade. Os chineses, por exemplo, consumiram cinco vezes mais carne em 2005 que em 1980. Como são necessários três quilos de grãos para produzir um quilo de carne de ave, e mais que o dobro para se obter a mesma quantidade de carne bovina, para dar conta da demanda é preciso aumentar a produção dos cereais forrageiros e os oleaginosos, integrantes da dieta básica dos animais.
Com isso, as exportações mundiais de trigo triplicaram nos últimos cinqüenta anos [6]. O Egito, celeiro da Roma antiga, tornou-se o principal consumidor das colheitas estrangeiras. Na região do Mediterrâneo, assim como na África subsaariana, o crescimento das importações a preços baixos durante décadas de abundância praticamente asfixiou a agricultura local e a “conta alimentar” desses países tornou-se exorbitante. Em um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em junho de 2007, o economista Adam Prakash estimava que as importações alimentares vão custar 90% a mais que em 2000 para as nações menos avançadas [7]. Apenas entre 2006 e 2007, a “conta alimentar” cresceu um terço na África e até 50% nos países mais dependentes.
Os grandes produtores são os mais favorecidos com essa situação. O maior deles, os Estados Unidos, registrou uma receita agrícola recorde: 85 bilhões de dólares no ano passado. De acordo com as estimativas do Ministério da Agricultura americano, o crescimento em 2008 parece ainda mais promissor. Entre os países emergentes tradicionalmente exportadores, tais como a Argentina [8] e a Rússia, a crise não passou incólume e gerou inflação. A solução encontrada foi erigir barreiras para manter os preços locais em níveis razoáveis, o que gerou mais expectativa no comércio global.
Na outra ponta da cadeia estão os países em desenvolvimento. Essencialmente importadores, eles enfrentam inúmeros levantes populares, como os que irromperam no México [9], no Senegal, no Marrocos e na Mauritânia. Afinal, se o aumento da cesta básica é suportável nas economias desenvolvidas, em que a alimentação não representa mais que 14% dos gastos, ele se torna inadministrável na África subsaariana, onde os gastos com alimentos consomem 60% da renda. Expostas, essas nações recorrem às subvenções quando suas finanças permitem. Em setembro de 2007, por exemplo, o aumento do preço do pão imposto pelo sindicato dos padeiros provocou violentas manifestações no Marrocos. Temendo que a revolta popular degenerasse em convulsão social, o governo tunisiano chegou a pedir aos padeiros que reduzissem o peso do produto, para evitar a alta. Por fim, o Estado preferiu suspender as diversas taxas sobre a importação para aliviar o custo das empresas de moagem.
Mais um problema enfrentado pela África é o corte de ajuda alimentar vinda do exterior. “Quando o preço do trigo aumenta, o auxílio diminui. A generosidade dos países do Norte se expressa apenas quando eles dispõem de excedentes para doação, que na verdade contribuem para baixar os estoques e manter os preços”, observa Marc Dufumier, especialista em agricultura comparada. Os números publicados pelo Conselho Internacional de Cereais [10] confirmam: no decorrer de 2005-2006, 8,3 milhões de toneladas de grãos foram enviadas como ajuda alimentar. Já em 2006-2007, foram 7,4 milhões e este ano o auxílio deverá cair para 6 milhões de toneladas.
As revoltas relacionadas à fome, portanto, não estão perto de se extinguir: uma vez que a oferta não irá satisfazer a demanda, os preços continuarão sua escalada. Para reverter a tendência, os governos poderiam recorrer ao “imperativo do consumo cidadão”, como sugerido por um colunista tunisiano [11], e pedir à população que ingerisse menos cuscuz, menos pão e, principalmente, menos carne. Mas o apelo tem poucas chances de obter apoio nos países onde a dieta básica começa a melhorar. É o caso da China, onde Ministério da Saúde está estimulando as mulheres a consumirem laticínios para absorver mais cálcio. Ora, quando falamos de leite, falamos não só de gado, mas também de oleaginosas e cereais para sua nutrição.
É preciso contar igualmente com o fenômeno especulativo. “Seja um agente da volatilidade dos mercados agrícolas, não um mero espectador”, aconselhava, no final de 2007, a Financeagri, empresa francesa de informações especializada em matérias-primas agrícolas. Esta oferta comercial ilustra a revolução em curso nos mercados de futuros agrícolas. Inicialmente criados para cobrir o risco da variação de preços, eles se tornaram terrenos de caça apreciados pelos especuladores.
Os índices agrícolas, que refletem a evolução das cotações, fazem sucesso. No momento em que os mercados de cereais dispararam, quintuplicou o volume de capitais gerados pelos fundos de investimentos cotados sobre os produtos agrícolas europeus, passando de 156 milhões de dólares para 911 milhões de dólares, segundo a Barca, filial do banco britânico Barclays [12]. De acordo com a mesma fonte, os empréstimos contraídos dos fundos investidos nos mercados agrícolas americanos deram um salto ainda maior, multiplicando-se por sete entre o primeiro e o último trimestres de 2007.
Um outro fator seduziu os investidores: a convergência entre os preços dos produtos energéticos e dos cereais destinados à indústria de biocombustíveis. Nessa atmosfera eufórica, os agricultores também procuram maximizar seus lucros. Na França, muitos contratos não foram honrados, especialmente para a entrega do trigo moído e da cevada, já que os produtores venderam a colheita diretamente aos industriais. Uma atitude bem compreensível, reconhece Philippe Mangin, presidente da Coop de France [13]: “os camponeses nunca depararam com tamanha volatilidade e as cotações triplicaram em quinze meses! É de perder a cabeça, principalmente após três anos de vacas magras”. Por isso mesmo, segundo as estimativas do Conselho Internacional de Cereais, a superfície de trigo plantada na França deverá aumentar em 4% em 2008.
“A terra é um investimento promissor”, assegura o investidor britânico Jim Slater. Após ter feito fortuna no mercado de metais, ele redirecionou seu foco para a agricultura, privilegiando os investimentos nos programas de irrigação. As vastas estepes da Sibéria Oriental, na Rússia, e as terras negras da Ucrânia estão bem cotadas por sua vocação para desenvolver cultivos em larga escala, embora um pouco prejudicadas pelo clima continental, principalmente pelas geadas. Em contrapartida, na América do Sul, a Argentina e o Brasil podem transformar o pampa e as florestas em terras cultiváveis. “Ainda há ganhos de produtividade dos quais as pessoas nem se dão conta”, estima Marc Dufumier. Sem dúvida, as duas nações guardam o futuro da agricultura de exportação, onde os custos de produção são mais baixos que na Europa e nos Estados Unidos e os rendimentos ainda estão incipientes. Mas, como sempre, o desenvolvimento pode trazer conseqüências perversas, como a generalização dos organismos geneticamente modificados (OGM), onipresentes na Argentina, e o aumento do desflorestamento no Brasil.
Para as nações mais afetadas pelo choque dos cereais, a opção é mais radical ainda: passa por um verdadeiro renascimento de sua agricultura. O Mali já está a salvo, graças aos investimentos na produção de arroz no delta do rio Níger e ao bom senso dos cultivadores de algodão. Decepcionados com a deterioração do preço oferecido pelas empresas algodoeiras, eles utilizaram os insumos alocados a essa cultura para suas sementes de sorgo ou de milho. No vizinho Burquina Faso, os campos de soja também substituíram vantajosamente o produto.
Assim, o aquecimento dos cereais colocou novamente em pauta a questão do papel da agricultura no desenvolvimento. Ironia da história, o Banco Mundial, que contribuiu para enfraquecer os cultivos nos países ao impor a liberalização da economia, incluiu esse setor no centro dos esforços da luta contra a pobreza em seu relatório de 2008.
[1] Ler Jean Ziegler, disponível no site.
[2] Entre 1770 e l870, esse setor reduziu sua participação na renda nacional de 45 % para 14 %.
[3] Leia o estudo, publicado em dezembro de 2006, está disponível em Com o aquecimento das matérias-primas agrícolas, a segurança alimentar tornou-se um tema recorrente nas intervenções das autoridades políticas britânicas. Ler Jenny Wiggins e Javier Blas, Financial Times, Londres, 24 de outubro de 2007.
[4] Eric Holtz-Giménez, “Les cinq mythes de la transition vers les agrocarburants”, Le Monde diplomatique, junho de 2007.
[5] 5 Se for aplicada a lei sobre energia, votada pelo Congresso americano no final de 2007, será necessário injetar de 100 a 110 milhões de toneladas de milho nas destilarias em 2008, contra os 81 milhões de toneladas no ano anterior. Sabendo que os Estados Unidos produzem 40 % do milho mundial e cerca da metade do volume exportado, qualquer variação de sua colheita abala o mercado internacional de cereais. O Brasil é o segundo maior fabricante, mas baseia sua produção na cana-de-açúcar.
[6] O trigo é consumido em quase todas as partes. Suas propriedades físicas fazem dele o único cereal panificável: ele é insubstituível na fabricação do pão, das massas e do cuscuz. É o cereal mais comercializado e seus maiores exportadores são os Estados Unidos, a União Européia, a Austrália, o Canadá e a Argentina.
[7] Perspectivas da alimentação 2007, Roma, 7 de junho de 2007.
[8] No decorrer de março, o governo de Cristina Kirchner anunciou o aumento em quase 9% do imposto sobre as exportações de soja, girassol, milho e trigo. Considerando que o aumento dos preços da soja (70% em 2007) justifica essa alta, o governo pretende utilizá-lo para redistribuir as riquezas para os setores mais pobres. A medida provocou duas semanas de greves e protesto de grandes proprietários e agricultores, acarretando uma carestia organizada de alimentos nas cidades.
[9] Ler Anne Vigna, “Sem tortillas nem empregos”, Le Monde diplomatique Brasil, edição 9.
[10] O Conselho Internacional de Cereais agrupa todos os signatários da Convenção sobre o comércio de cereais. Ele realiza duas sessões ordinárias a cada ano, geralmente em junho e em dezembro. Tem o papel de fiscalizar o cumprimento da convenção, de debater a evolução e a orientação dos mercados cerealistas mundiais e de assegurar o acompanhamento das modificações feitas nas políticas cerealistas nacionais e suas eventuais implicações. Ver o site.
[11] Larbi Chennaoui, La presse de Tunisie, Tunis, novembro de 2007.
[12] Estudo trimestral The Commodity Refiner consagrado aos mercados de matérias primas.
[13] Leia mais
“Le Monde diplomatique”
Extraído de: Blog Controvérsia, 23/09/2008
Com o milho norte-americano desviado para a fabricação do etanol, os preços do produto disparam no mercado internacional. Enquanto isso, mudanças climáticas na Austrália, Argentina e Rússia afetam as safras de trigo. Como se não bastasse, o aumento do consumo de carne subtrai importantes reservas cerealistas
Dominique Baillard
Revoltas populares questionam o alto custo de vida em Burquina Faso e na República dos Camarões. Manifestações contra o valor do pão ganharam as ruas do Senegal e do Egito. Observadores internacionais como Jean Ziegler, há até pouco tempo relator especial das Nações Unidas pelo direito à alimentação, evocam o temor da falta de alimentos no Oeste do continente negro [1]. A ONU, por sua vez, classifica o aumento mundial dos preços dos cereais como um “tsunami silencioso”, que pode deixar cem milhões de pessoas famintas.
Até nos países industrializados a segurança alimentar voltou a ser motivo de preocupação. No Reino Unido, por exemplo, onde a agricultura foi sacrificada no altar da revolução industrial [2], o departamento encarregado dos negócios rurais, alimentação e meio ambiente está alarmado com as ameaças em vista [3].
A alta de preços já era evidente em agosto do ano passado, quando os agricultores do hemisfério Norte realizaram sua colheita e as cotações de grãos simplesmente duplicaram. Na Câmara de Comércio de Chicago, referência para o mercado mundial de cereais, a tonelada do trigo passou de 200 dólares para 400 dólares. O mesmo cenário pôde ser visto em Paris, onde o preço do trigo moído atingiu seu ápice no começo do mês de setembro e chegou a 300 euros por tonelada. No decorrer de março deste ano, quando os Estados Unidos haviam quase esgotado sua capacidade de exportação, os preços continuaram a subir. Em doze meses, o valor do trigo aumentou 130% no mercado de futuros americano! Surpreendidas, as indústrias de moagem e os fabricantes de massa e de alimentos destinados ao gado protestaram com veemência nos países desenvolvidos.
De fato, houve um rompimento do equilíbrio precário entre oferta e procura. O fenômeno ocorreu em função de dois acontecimentos. O primeiro deles foi o aumento da demanda gerado pelo boom dos biocombustíveis [4]. Sua fabricação passou a absorver 10% da produção mundial de milho, e de acordo com o Instituto de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI), sediado em Washington, a situação tende a se agravar: a indústria de etanol poderá fazer o preço do milho subir até 2020 entre 25% e 72%, na previsão mais alarmista. A variação dependerá fundamentalmente dos Estados Unidos, principal fabricante de biocombustíveis do mundo [5].
A segunda ocorrência está relacionada às mudanças climáticas, tais como a seca na Austrália, a geada na Argentina e a falta de sol e o excesso de água na Europa, que interferiram negativamente na colheita. Tanto o etanol quanto as alterações do clima carregam em seu paroxismo as tensões causadas pela demanda crescente de populações inteiras, como a chinesa.
Outro fator que devemos levar em conta é que somos cada vez mais carnívoros. O crescimento econômico dos países emergentes, associado à urbanização, modificou profundamente o comportamento alimentar da humanidade. Os chineses, por exemplo, consumiram cinco vezes mais carne em 2005 que em 1980. Como são necessários três quilos de grãos para produzir um quilo de carne de ave, e mais que o dobro para se obter a mesma quantidade de carne bovina, para dar conta da demanda é preciso aumentar a produção dos cereais forrageiros e os oleaginosos, integrantes da dieta básica dos animais.
Com isso, as exportações mundiais de trigo triplicaram nos últimos cinqüenta anos [6]. O Egito, celeiro da Roma antiga, tornou-se o principal consumidor das colheitas estrangeiras. Na região do Mediterrâneo, assim como na África subsaariana, o crescimento das importações a preços baixos durante décadas de abundância praticamente asfixiou a agricultura local e a “conta alimentar” desses países tornou-se exorbitante. Em um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em junho de 2007, o economista Adam Prakash estimava que as importações alimentares vão custar 90% a mais que em 2000 para as nações menos avançadas [7]. Apenas entre 2006 e 2007, a “conta alimentar” cresceu um terço na África e até 50% nos países mais dependentes.
Os grandes produtores são os mais favorecidos com essa situação. O maior deles, os Estados Unidos, registrou uma receita agrícola recorde: 85 bilhões de dólares no ano passado. De acordo com as estimativas do Ministério da Agricultura americano, o crescimento em 2008 parece ainda mais promissor. Entre os países emergentes tradicionalmente exportadores, tais como a Argentina [8] e a Rússia, a crise não passou incólume e gerou inflação. A solução encontrada foi erigir barreiras para manter os preços locais em níveis razoáveis, o que gerou mais expectativa no comércio global.
Na outra ponta da cadeia estão os países em desenvolvimento. Essencialmente importadores, eles enfrentam inúmeros levantes populares, como os que irromperam no México [9], no Senegal, no Marrocos e na Mauritânia. Afinal, se o aumento da cesta básica é suportável nas economias desenvolvidas, em que a alimentação não representa mais que 14% dos gastos, ele se torna inadministrável na África subsaariana, onde os gastos com alimentos consomem 60% da renda. Expostas, essas nações recorrem às subvenções quando suas finanças permitem. Em setembro de 2007, por exemplo, o aumento do preço do pão imposto pelo sindicato dos padeiros provocou violentas manifestações no Marrocos. Temendo que a revolta popular degenerasse em convulsão social, o governo tunisiano chegou a pedir aos padeiros que reduzissem o peso do produto, para evitar a alta. Por fim, o Estado preferiu suspender as diversas taxas sobre a importação para aliviar o custo das empresas de moagem.
Mais um problema enfrentado pela África é o corte de ajuda alimentar vinda do exterior. “Quando o preço do trigo aumenta, o auxílio diminui. A generosidade dos países do Norte se expressa apenas quando eles dispõem de excedentes para doação, que na verdade contribuem para baixar os estoques e manter os preços”, observa Marc Dufumier, especialista em agricultura comparada. Os números publicados pelo Conselho Internacional de Cereais [10] confirmam: no decorrer de 2005-2006, 8,3 milhões de toneladas de grãos foram enviadas como ajuda alimentar. Já em 2006-2007, foram 7,4 milhões e este ano o auxílio deverá cair para 6 milhões de toneladas.
As revoltas relacionadas à fome, portanto, não estão perto de se extinguir: uma vez que a oferta não irá satisfazer a demanda, os preços continuarão sua escalada. Para reverter a tendência, os governos poderiam recorrer ao “imperativo do consumo cidadão”, como sugerido por um colunista tunisiano [11], e pedir à população que ingerisse menos cuscuz, menos pão e, principalmente, menos carne. Mas o apelo tem poucas chances de obter apoio nos países onde a dieta básica começa a melhorar. É o caso da China, onde Ministério da Saúde está estimulando as mulheres a consumirem laticínios para absorver mais cálcio. Ora, quando falamos de leite, falamos não só de gado, mas também de oleaginosas e cereais para sua nutrição.
É preciso contar igualmente com o fenômeno especulativo. “Seja um agente da volatilidade dos mercados agrícolas, não um mero espectador”, aconselhava, no final de 2007, a Financeagri, empresa francesa de informações especializada em matérias-primas agrícolas. Esta oferta comercial ilustra a revolução em curso nos mercados de futuros agrícolas. Inicialmente criados para cobrir o risco da variação de preços, eles se tornaram terrenos de caça apreciados pelos especuladores.
Os índices agrícolas, que refletem a evolução das cotações, fazem sucesso. No momento em que os mercados de cereais dispararam, quintuplicou o volume de capitais gerados pelos fundos de investimentos cotados sobre os produtos agrícolas europeus, passando de 156 milhões de dólares para 911 milhões de dólares, segundo a Barca, filial do banco britânico Barclays [12]. De acordo com a mesma fonte, os empréstimos contraídos dos fundos investidos nos mercados agrícolas americanos deram um salto ainda maior, multiplicando-se por sete entre o primeiro e o último trimestres de 2007.
Um outro fator seduziu os investidores: a convergência entre os preços dos produtos energéticos e dos cereais destinados à indústria de biocombustíveis. Nessa atmosfera eufórica, os agricultores também procuram maximizar seus lucros. Na França, muitos contratos não foram honrados, especialmente para a entrega do trigo moído e da cevada, já que os produtores venderam a colheita diretamente aos industriais. Uma atitude bem compreensível, reconhece Philippe Mangin, presidente da Coop de France [13]: “os camponeses nunca depararam com tamanha volatilidade e as cotações triplicaram em quinze meses! É de perder a cabeça, principalmente após três anos de vacas magras”. Por isso mesmo, segundo as estimativas do Conselho Internacional de Cereais, a superfície de trigo plantada na França deverá aumentar em 4% em 2008.
“A terra é um investimento promissor”, assegura o investidor britânico Jim Slater. Após ter feito fortuna no mercado de metais, ele redirecionou seu foco para a agricultura, privilegiando os investimentos nos programas de irrigação. As vastas estepes da Sibéria Oriental, na Rússia, e as terras negras da Ucrânia estão bem cotadas por sua vocação para desenvolver cultivos em larga escala, embora um pouco prejudicadas pelo clima continental, principalmente pelas geadas. Em contrapartida, na América do Sul, a Argentina e o Brasil podem transformar o pampa e as florestas em terras cultiváveis. “Ainda há ganhos de produtividade dos quais as pessoas nem se dão conta”, estima Marc Dufumier. Sem dúvida, as duas nações guardam o futuro da agricultura de exportação, onde os custos de produção são mais baixos que na Europa e nos Estados Unidos e os rendimentos ainda estão incipientes. Mas, como sempre, o desenvolvimento pode trazer conseqüências perversas, como a generalização dos organismos geneticamente modificados (OGM), onipresentes na Argentina, e o aumento do desflorestamento no Brasil.
Para as nações mais afetadas pelo choque dos cereais, a opção é mais radical ainda: passa por um verdadeiro renascimento de sua agricultura. O Mali já está a salvo, graças aos investimentos na produção de arroz no delta do rio Níger e ao bom senso dos cultivadores de algodão. Decepcionados com a deterioração do preço oferecido pelas empresas algodoeiras, eles utilizaram os insumos alocados a essa cultura para suas sementes de sorgo ou de milho. No vizinho Burquina Faso, os campos de soja também substituíram vantajosamente o produto.
Assim, o aquecimento dos cereais colocou novamente em pauta a questão do papel da agricultura no desenvolvimento. Ironia da história, o Banco Mundial, que contribuiu para enfraquecer os cultivos nos países ao impor a liberalização da economia, incluiu esse setor no centro dos esforços da luta contra a pobreza em seu relatório de 2008.
[1] Ler Jean Ziegler, disponível no site.
[2] Entre 1770 e l870, esse setor reduziu sua participação na renda nacional de 45 % para 14 %.
[3] Leia o estudo, publicado em dezembro de 2006, está disponível em Com o aquecimento das matérias-primas agrícolas, a segurança alimentar tornou-se um tema recorrente nas intervenções das autoridades políticas britânicas. Ler Jenny Wiggins e Javier Blas, Financial Times, Londres, 24 de outubro de 2007.
[4] Eric Holtz-Giménez, “Les cinq mythes de la transition vers les agrocarburants”, Le Monde diplomatique, junho de 2007.
[5] 5 Se for aplicada a lei sobre energia, votada pelo Congresso americano no final de 2007, será necessário injetar de 100 a 110 milhões de toneladas de milho nas destilarias em 2008, contra os 81 milhões de toneladas no ano anterior. Sabendo que os Estados Unidos produzem 40 % do milho mundial e cerca da metade do volume exportado, qualquer variação de sua colheita abala o mercado internacional de cereais. O Brasil é o segundo maior fabricante, mas baseia sua produção na cana-de-açúcar.
[6] O trigo é consumido em quase todas as partes. Suas propriedades físicas fazem dele o único cereal panificável: ele é insubstituível na fabricação do pão, das massas e do cuscuz. É o cereal mais comercializado e seus maiores exportadores são os Estados Unidos, a União Européia, a Austrália, o Canadá e a Argentina.
[7] Perspectivas da alimentação 2007, Roma, 7 de junho de 2007.
[8] No decorrer de março, o governo de Cristina Kirchner anunciou o aumento em quase 9% do imposto sobre as exportações de soja, girassol, milho e trigo. Considerando que o aumento dos preços da soja (70% em 2007) justifica essa alta, o governo pretende utilizá-lo para redistribuir as riquezas para os setores mais pobres. A medida provocou duas semanas de greves e protesto de grandes proprietários e agricultores, acarretando uma carestia organizada de alimentos nas cidades.
[9] Ler Anne Vigna, “Sem tortillas nem empregos”, Le Monde diplomatique Brasil, edição 9.
[10] O Conselho Internacional de Cereais agrupa todos os signatários da Convenção sobre o comércio de cereais. Ele realiza duas sessões ordinárias a cada ano, geralmente em junho e em dezembro. Tem o papel de fiscalizar o cumprimento da convenção, de debater a evolução e a orientação dos mercados cerealistas mundiais e de assegurar o acompanhamento das modificações feitas nas políticas cerealistas nacionais e suas eventuais implicações. Ver o site.
[11] Larbi Chennaoui, La presse de Tunisie, Tunis, novembro de 2007.
[12] Estudo trimestral The Commodity Refiner consagrado aos mercados de matérias primas.
[13] Leia mais
“Le Monde diplomatique”
Extraído de: Blog Controvérsia, 23/09/2008
sábado, 20 de setembro de 2008
Ministério, sim! Privatização das águas, não!
20 de Setembro de 2008 às 08h 00m · Jessica · Arquivado sob Geral
Pastoral dos Pescadores *
Adital - Enfim, depois de muita luta dos pescadores do Brasil, foi criado o Ministério da Pesca. Ao contrário de comemorar ingenuamente a vitória e se acomodar, precisamos nos preparar para uma luta muito maior que agora se inicia: garantir que este ministério esteja voltado para os interesses dos trabalhadores pescadores e pescadoras artesanais e para um projeto nacional que interesse ao povo brasileiro e não seja uma estrutura governamental submetida aos interesses dos ricos e do hidronegócio. Devemos estar atentos acerca do espaço a ser ocupado pela pesca artesanal neste novo ministério.
Existe uma grande euforia do setor empresarial. Eles acreditam que controlam o Ministério e que ele será um aliado poderoso para os planos de Privatização do Mar e dos Rios para implantar grandes fazendas de cultivo concentrando renda e território nas mãos de poucos. Eles são os mesmos que desenvolveram cultivos de Salmão no Chile levando grande prejuízo para os pescadores daquele país. Empresários da carcinicultura também têm interesse em migrar para fazendas marinhas, pois a atividade está em crise sanitária causada por várias doenças e estão enfrentando a resistência dos trabalhadores dos manguezais.
Estamos com grande preocupação devido a algumas ações realizadas pela Secretaria da Pesca que sinalizam alianças com a elite empresarial da aqüicultura e seus interesses em privatizar o Mar e os Rios brasileiros para implantar grandes fazendas. Na calada da noite, durante o carnaval deste ano, enquanto muitos pescadores e pescadoras estavam desavisados tentou-se privatizar 160 hectares do Mar a poucos quilômetros da praia de Boa Viagem no Estado de Pernambuco numa área importante para a pesca artesanal. Este fato marcou a primeira fatia do mar a ser privatizada no litoral brasileiro feita de forma covarde e inconseqüente, ignorando a legislação brasileira e os tratados internacionais assinados pelo Brasil como a resolução 169 da OIT que trata de direitos das populações tradicionais. Outras privatizações estão sendo planejadas para o litoral de São Paulo e Bahia e também em Açudes e Barragens como é o caso do Castanhão no Ceará. É para isso que eles querem um Ministério? É para isso que eles querem que certas competências que hoje estão em outros órgãos que resistem à privatização de espaços das populações tradicionais sejam repassadas para este novo ministério?
Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pesca artesanal como argumento para legitimar um investimento maciço em aqüicultura de grande escala. De fato existe uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadas pelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calar é: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos como causas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimento insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais, concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental e desrespeita a legislação. Acrescenta-se a isso, a insuficiência das políticas públicas, ordenamento participativo e investimentos adequados voltados para a pesca artesanal e para as comunidades tradicionais. Em lugar de enfrentar as causas dos problemas e fortalecer a pesca artesanal vemos o discurso falacioso de uma elite desenvolvimentista e seus aliados justificando a privatização das águas do Mar e dos Rios e contando com a subserviência da Secretaria de Pesca.
Reafirmamos a importância estratégica da pesca artesanal do Brasil para a inclusão social, para a segurança alimentar, para o desenvolvimento sustentável, para a preservação da biodiversidade e preservação da identidade e da cultura das populações tradicionais. Exigimos garantia do território que historicamente ocupamos e ações efetivas de estado voltadas para os povos das águas.
*CNBB - Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz
“Adital”
Extraído do blog Controvérsia
Pastoral dos Pescadores *
Adital - Enfim, depois de muita luta dos pescadores do Brasil, foi criado o Ministério da Pesca. Ao contrário de comemorar ingenuamente a vitória e se acomodar, precisamos nos preparar para uma luta muito maior que agora se inicia: garantir que este ministério esteja voltado para os interesses dos trabalhadores pescadores e pescadoras artesanais e para um projeto nacional que interesse ao povo brasileiro e não seja uma estrutura governamental submetida aos interesses dos ricos e do hidronegócio. Devemos estar atentos acerca do espaço a ser ocupado pela pesca artesanal neste novo ministério.
Existe uma grande euforia do setor empresarial. Eles acreditam que controlam o Ministério e que ele será um aliado poderoso para os planos de Privatização do Mar e dos Rios para implantar grandes fazendas de cultivo concentrando renda e território nas mãos de poucos. Eles são os mesmos que desenvolveram cultivos de Salmão no Chile levando grande prejuízo para os pescadores daquele país. Empresários da carcinicultura também têm interesse em migrar para fazendas marinhas, pois a atividade está em crise sanitária causada por várias doenças e estão enfrentando a resistência dos trabalhadores dos manguezais.
Estamos com grande preocupação devido a algumas ações realizadas pela Secretaria da Pesca que sinalizam alianças com a elite empresarial da aqüicultura e seus interesses em privatizar o Mar e os Rios brasileiros para implantar grandes fazendas. Na calada da noite, durante o carnaval deste ano, enquanto muitos pescadores e pescadoras estavam desavisados tentou-se privatizar 160 hectares do Mar a poucos quilômetros da praia de Boa Viagem no Estado de Pernambuco numa área importante para a pesca artesanal. Este fato marcou a primeira fatia do mar a ser privatizada no litoral brasileiro feita de forma covarde e inconseqüente, ignorando a legislação brasileira e os tratados internacionais assinados pelo Brasil como a resolução 169 da OIT que trata de direitos das populações tradicionais. Outras privatizações estão sendo planejadas para o litoral de São Paulo e Bahia e também em Açudes e Barragens como é o caso do Castanhão no Ceará. É para isso que eles querem um Ministério? É para isso que eles querem que certas competências que hoje estão em outros órgãos que resistem à privatização de espaços das populações tradicionais sejam repassadas para este novo ministério?
Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pesca artesanal como argumento para legitimar um investimento maciço em aqüicultura de grande escala. De fato existe uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadas pelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calar é: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos como causas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimento insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais, concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental e desrespeita a legislação. Acrescenta-se a isso, a insuficiência das políticas públicas, ordenamento participativo e investimentos adequados voltados para a pesca artesanal e para as comunidades tradicionais. Em lugar de enfrentar as causas dos problemas e fortalecer a pesca artesanal vemos o discurso falacioso de uma elite desenvolvimentista e seus aliados justificando a privatização das águas do Mar e dos Rios e contando com a subserviência da Secretaria de Pesca.
Reafirmamos a importância estratégica da pesca artesanal do Brasil para a inclusão social, para a segurança alimentar, para o desenvolvimento sustentável, para a preservação da biodiversidade e preservação da identidade e da cultura das populações tradicionais. Exigimos garantia do território que historicamente ocupamos e ações efetivas de estado voltadas para os povos das águas.
*CNBB - Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz
“Adital”
Extraído do blog Controvérsia
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
Grilagem de terras públicas na Amazônia
19 de Setembro de 2008 às 22h 00m · Jessica · Arquivado sob Geral
Ariovaldo Umbelino de Oliveira*
O processo de grilagem das terras públicas no Brasil iniciou-se depois da entrada em vigor da Lei de Terras de 1850. Ele passou a ocorrer porque o artigo segundo desta lei proibiu a posse de todas as terras devolutas que pertenciam ao Império. Aliás, além de proibi-la, a lei criminalizava seu autor, sujeitando-o a pena de dois a seis meses de prisão, multa de cem mil réis e a reparação dos danos causados.
Dessa forma, a lei que legitimava, através de seu artigo quinto, todas as posses existentes até então, quaisquer que fossem suas áreas desde que medidas e devidamente registradas nos livros das freguesias até 1856, passava a interditá-la. Porém, isto aconteceu apenas no plano legal, pois o imaginário social que imperava na sociedade de então tinha na abertura da posse o caminho para se ter acesso à propriedade privada da terra, uma vez que o instrumento jurídico colonial da sesmaria deixara de existir no Brasil com a independência.
A Constituição republicana de 1891 transferiu para os Estados as terras públicas devolutas, mantendo sob controle da União apenas as terras das faixas de fronteira e da Marinha. Porém, nem o governo federal e muito menos os governos estaduais fizeram, através de leis próprias ou não, todas as ações discriminatórias e as respectivas arrecadações de suas terras devolutas. Este fato gerou, até a atualidade, a existência de terras devolutas estaduais e federais em todos os Estados brasileiros.
Pelos dados disponíveis no Incra, em 2003 a área ocupada pelas terras públicas devolutas era superior a 400 milhões de hectares, ou seja, quase a metade do território nacional. A metade delas, inclusive, não está sequer cadastrada no Incra. Essas terras foram, portanto, cercadas, porém “não existem” para o Estado. Quer dizer, o Estado não sabe quem se apropriou do território pátrio, legal ou ilegalmente. E mais, a legislação agrária em vigor permite a legalização apenas das posses até 50 hectares pela Constituição de 1988, e até 100 hectares excepcionalmente.
Assim, as áreas maiores do que as posses legais ocupadas não podem ser legalizadas. E, para manter o controle destas terras que não lhes pertencem, os grileiros atuaram de modo a impedir politicamente que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras sob sua jurisdição. É neste particular também que está a resistência da maioria dos proprietários de terra à reforma agrária. Ou seja, a luta pela reforma agrária desencadeada pelos movimentos sócio-territoriais colocou a nu esta estratégia ilegal das elites agrárias da apropriação privada do patrimônio público.
Dessa forma, a grilagem das terras públicas na Amazônia revela apenas uma das dimensões do problema fundiário nacional, pois nesta região brasileira estão mais de 168 milhões de hectares de terras públicas, devolutas ou não. A sua apropriação privada foi estimulada pelas políticas públicas da “Marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas, dos incentivos fiscais da Sudam durante o regime militar e, na atualidade, pelo estímulo à rápida expansão do agronegócio da madeira, pecuária e soja nesta região.
O processo de grilagem, por sua vez, iniciou-se com o envelhecimento artificial dos documentos com a ajuda dos grilos. Depois, novos recursos passaram a ser utilizados, e a estratégia foi a regularização das terras griladas através de “laranjas”, via procurações destes. Foi o período que denominei de “grilagem legalizada” e que ocorreu principalmente durante os governos militares.
Depois da Constituição de 1988, uma parte dos funcionários do Incra passou a “oferecer” e “reservar” as terras públicas para os grileiros e indicar o caminho “legal” para obtê-las. Inclusive, foi por causa disso que a Polícia Federal fez a Operação Faroeste no Pará e mandou para a prisão altos funcionários daquele órgão. Atualmente, o Ministério Público Federal move também uma ação na justiça para cancelar os “assentamentos da reforma agrária laranja” da regional de Santarém. O motivo é sempre o mesmo: a “banda podre” dos funcionários do Incra tentando legalizar a grilagem das terras públicas.
O Incra, desde os governos militares, arrecadou e/ou discriminou um total de 105,7 milhões de hectares. Até 2003, este órgão tinha destinado um total de 37,9 milhões e possuía ainda sem destinação 67,8 milhões de hectares assim distribuídos (em milhões): 4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas; 9,2 em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins; 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão.
Estas terras não destinadas do Incra estão “cercadas e apropriadas privadamente”, e os grileiros, através de seus representantes no Congresso Nacional, propuseram, e o governo aceitou, a “solução jurídica” para legalizar as terras griladas - através do artigo 118 da Lei nº 11.196/05 - até 500 hectares. Mas a ação do governo Lula em apoio aos grileiros da Amazônia Legal foi mais contundente com a MP 422, já aprovada no Congresso Nacional. Ela vai autorizar o Incra a dispensar de licitação a alienação dos imóveis públicos da União com até 15 módulos fiscais (1500 hectares) na Amazônia Legal.
Dessa forma, uma lei está revogando os artigos 188 e 191, pois este último define o posseiro como “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.
Se não bastasse esta evidente inconstitucionalidade, os grileiros das terras públicas na Amazônia Legal utilizarão também a MP 422 para regularizar a grilagem de todas as terras do Incra naquela região, através do desdobramento das áreas griladas superiores a 15 módulos fiscais em áreas com até 14 módulos fiscais. E, dessa forma, Lula entrará para a história do Brasil não como o presidente que fez a maior reforma agrária do país, mas como aquele que fez a maior regularização das terras públicas griladas do Brasil, destronando, por certo, o senador Vergueiro, autor da Lei de Terras de 1850.
*Ariovaldo Umbelino de Oliveira é professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor, entre outros livros, de “Modo capitalista de produção (Ática, 1995)”, “Agricultura camponesa no Brasil” (Contexto, 1997).Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
“MST”
Extraído do site Controvérsia.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira*
O processo de grilagem das terras públicas no Brasil iniciou-se depois da entrada em vigor da Lei de Terras de 1850. Ele passou a ocorrer porque o artigo segundo desta lei proibiu a posse de todas as terras devolutas que pertenciam ao Império. Aliás, além de proibi-la, a lei criminalizava seu autor, sujeitando-o a pena de dois a seis meses de prisão, multa de cem mil réis e a reparação dos danos causados.
Dessa forma, a lei que legitimava, através de seu artigo quinto, todas as posses existentes até então, quaisquer que fossem suas áreas desde que medidas e devidamente registradas nos livros das freguesias até 1856, passava a interditá-la. Porém, isto aconteceu apenas no plano legal, pois o imaginário social que imperava na sociedade de então tinha na abertura da posse o caminho para se ter acesso à propriedade privada da terra, uma vez que o instrumento jurídico colonial da sesmaria deixara de existir no Brasil com a independência.
A Constituição republicana de 1891 transferiu para os Estados as terras públicas devolutas, mantendo sob controle da União apenas as terras das faixas de fronteira e da Marinha. Porém, nem o governo federal e muito menos os governos estaduais fizeram, através de leis próprias ou não, todas as ações discriminatórias e as respectivas arrecadações de suas terras devolutas. Este fato gerou, até a atualidade, a existência de terras devolutas estaduais e federais em todos os Estados brasileiros.
Pelos dados disponíveis no Incra, em 2003 a área ocupada pelas terras públicas devolutas era superior a 400 milhões de hectares, ou seja, quase a metade do território nacional. A metade delas, inclusive, não está sequer cadastrada no Incra. Essas terras foram, portanto, cercadas, porém “não existem” para o Estado. Quer dizer, o Estado não sabe quem se apropriou do território pátrio, legal ou ilegalmente. E mais, a legislação agrária em vigor permite a legalização apenas das posses até 50 hectares pela Constituição de 1988, e até 100 hectares excepcionalmente.
Assim, as áreas maiores do que as posses legais ocupadas não podem ser legalizadas. E, para manter o controle destas terras que não lhes pertencem, os grileiros atuaram de modo a impedir politicamente que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras sob sua jurisdição. É neste particular também que está a resistência da maioria dos proprietários de terra à reforma agrária. Ou seja, a luta pela reforma agrária desencadeada pelos movimentos sócio-territoriais colocou a nu esta estratégia ilegal das elites agrárias da apropriação privada do patrimônio público.
Dessa forma, a grilagem das terras públicas na Amazônia revela apenas uma das dimensões do problema fundiário nacional, pois nesta região brasileira estão mais de 168 milhões de hectares de terras públicas, devolutas ou não. A sua apropriação privada foi estimulada pelas políticas públicas da “Marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas, dos incentivos fiscais da Sudam durante o regime militar e, na atualidade, pelo estímulo à rápida expansão do agronegócio da madeira, pecuária e soja nesta região.
O processo de grilagem, por sua vez, iniciou-se com o envelhecimento artificial dos documentos com a ajuda dos grilos. Depois, novos recursos passaram a ser utilizados, e a estratégia foi a regularização das terras griladas através de “laranjas”, via procurações destes. Foi o período que denominei de “grilagem legalizada” e que ocorreu principalmente durante os governos militares.
Depois da Constituição de 1988, uma parte dos funcionários do Incra passou a “oferecer” e “reservar” as terras públicas para os grileiros e indicar o caminho “legal” para obtê-las. Inclusive, foi por causa disso que a Polícia Federal fez a Operação Faroeste no Pará e mandou para a prisão altos funcionários daquele órgão. Atualmente, o Ministério Público Federal move também uma ação na justiça para cancelar os “assentamentos da reforma agrária laranja” da regional de Santarém. O motivo é sempre o mesmo: a “banda podre” dos funcionários do Incra tentando legalizar a grilagem das terras públicas.
O Incra, desde os governos militares, arrecadou e/ou discriminou um total de 105,7 milhões de hectares. Até 2003, este órgão tinha destinado um total de 37,9 milhões e possuía ainda sem destinação 67,8 milhões de hectares assim distribuídos (em milhões): 4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas; 9,2 em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins; 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão.
Estas terras não destinadas do Incra estão “cercadas e apropriadas privadamente”, e os grileiros, através de seus representantes no Congresso Nacional, propuseram, e o governo aceitou, a “solução jurídica” para legalizar as terras griladas - através do artigo 118 da Lei nº 11.196/05 - até 500 hectares. Mas a ação do governo Lula em apoio aos grileiros da Amazônia Legal foi mais contundente com a MP 422, já aprovada no Congresso Nacional. Ela vai autorizar o Incra a dispensar de licitação a alienação dos imóveis públicos da União com até 15 módulos fiscais (1500 hectares) na Amazônia Legal.
Dessa forma, uma lei está revogando os artigos 188 e 191, pois este último define o posseiro como “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.
Se não bastasse esta evidente inconstitucionalidade, os grileiros das terras públicas na Amazônia Legal utilizarão também a MP 422 para regularizar a grilagem de todas as terras do Incra naquela região, através do desdobramento das áreas griladas superiores a 15 módulos fiscais em áreas com até 14 módulos fiscais. E, dessa forma, Lula entrará para a história do Brasil não como o presidente que fez a maior reforma agrária do país, mas como aquele que fez a maior regularização das terras públicas griladas do Brasil, destronando, por certo, o senador Vergueiro, autor da Lei de Terras de 1850.
*Ariovaldo Umbelino de Oliveira é professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor, entre outros livros, de “Modo capitalista de produção (Ática, 1995)”, “Agricultura camponesa no Brasil” (Contexto, 1997).Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
“MST”
Extraído do site Controvérsia.
A Fazenda Brasil
Henrrique Cortez
Há quem estranhe as...
Há quem estranhe as, aparentemente, desencontradas declarações dos ministros Mangabeira e Stephanes, em relação às políticas ambientais do governo Luiz Inácio da Silva. Mas o desencontro não existe, porque apenas refletem o que o governo realmente pensa e deseja.
O ministro Roberto Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) disse que o Brasil é o país com mais "proibições ambientais" no mundo e que o conjunto de restrições em vigor precisa ser "debatido com clareza e coragem", para que se possa "viver, produzir e preservar a Amazônia".
Por sua vez, o ministro Reinhold Stephanes afirmou que cerca de 70% da área do território brasileiro não pode ser cultivada por algum motivo legal, seja por reservas florestais, indígenas ou legislações que impedem o plantio comercial.
A senadora Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, demonstrou sua indignação a estas posições, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, de 11/08/2008, no qual diz "Pergunto: o problema seria o suposto excesso de leis ambientais ou a resistência do velho vício patrimonialista que mistura o público com o privado e se imagina acima do interesse coletivo?". E afirma: "Se o ministro expressa alguma nova visão do governo federal sobre política ambiental, trata-se de enorme contradição e retrocesso".
Na verdade, em relação ao governo, apenas as afirmações da senadora Marina Silva merecem reparos, porque os ministros não expressam alguma nova visão do governo federal sobre política ambiental, mas apenas a mesma política de sempre, inclusive a política ambiental de quando a senadora estava ministra.
O governo, este e todos os anteriores, sempre demonstrou permanente submissão aos interesses do agronegócio de exportação, principalmente os pecuaristas e sojicultores que, aliados aos grandes grupos econômicos e financeiros, apenas percebem os ativos ambientais como recursos econômicos a serem apropriados. O manejo sustentável dos recursos naturais e a agricultura familiar não estão na agenda de compromissos dos grandes interesses econômicos e, por conseqüência, também não estão na agenda do governo.
O governo mantém a opção pelo incentivo à produção e exportação de produtos primários como cláusula pétrea da economia nacional. Como em outras áreas, é a versão século XXI do modelo colonial, no qual as colônias exportavam produtos primários (com pequeno valor agregado) para beneficiamento pelas metrópoles, as quais os reexportavam (com grande valor agregado). Foi assim que as colônias financiaram o desenvolvimento dos países colonialistas e ainda é assim que o terceiro mundo financia os países que se dizem desenvolvidos.
Esta pauta colonial de exportação está na origem de tantos desencontros e ambigüidades, tal como a encontrada na produção do biodiesel, cujo programa foi lançado com o argumento de que seria a "redenção" da agricultura familiar no norte e nordeste do país. No entanto, o biodiesel é majoritariamente produzido a partir da soja (70% do total), passando ao largo da agricultura familiar. Mostrou-se como mais um projeto para beneficiar os mesmos de sempre, como sempre.
Precisamos iniciar as discussões sobre este modelo econômico escorado na exportação de produtos primários, com destaque para minério, alumínio primário, carne e grãos. É necessário questionar a quem serve este modelo e a quem beneficia.
Ou questionamos e encontramos um outro modelo de desenvolvimento ou continuaremos no modelo colonial de exportação de produtos primários. É o que fazemos desde o descobrimento (apenas mudamos de senhores ao longo do tempo) e ainda não chegamos lá.
Parafraseando o jornalista e ambientalista Washington Novaes, se devastação e exploração irracional de recursos naturais levasse ao desenvolvimento, já seríamos o mais rico e desenvolvido país do mundo.
*Henrique Cortez é ambientalista e coordenador do portal EcoDebate. Este texto foi publicado no sítio Correio da Cidadania
"Site Controvérsia" - 19/09/08
MST - Geografia - 19/9 - nº 3084
Há quem estranhe as...
Há quem estranhe as, aparentemente, desencontradas declarações dos ministros Mangabeira e Stephanes, em relação às políticas ambientais do governo Luiz Inácio da Silva. Mas o desencontro não existe, porque apenas refletem o que o governo realmente pensa e deseja.
O ministro Roberto Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) disse que o Brasil é o país com mais "proibições ambientais" no mundo e que o conjunto de restrições em vigor precisa ser "debatido com clareza e coragem", para que se possa "viver, produzir e preservar a Amazônia".
Por sua vez, o ministro Reinhold Stephanes afirmou que cerca de 70% da área do território brasileiro não pode ser cultivada por algum motivo legal, seja por reservas florestais, indígenas ou legislações que impedem o plantio comercial.
A senadora Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, demonstrou sua indignação a estas posições, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, de 11/08/2008, no qual diz "Pergunto: o problema seria o suposto excesso de leis ambientais ou a resistência do velho vício patrimonialista que mistura o público com o privado e se imagina acima do interesse coletivo?". E afirma: "Se o ministro expressa alguma nova visão do governo federal sobre política ambiental, trata-se de enorme contradição e retrocesso".
Na verdade, em relação ao governo, apenas as afirmações da senadora Marina Silva merecem reparos, porque os ministros não expressam alguma nova visão do governo federal sobre política ambiental, mas apenas a mesma política de sempre, inclusive a política ambiental de quando a senadora estava ministra.
O governo, este e todos os anteriores, sempre demonstrou permanente submissão aos interesses do agronegócio de exportação, principalmente os pecuaristas e sojicultores que, aliados aos grandes grupos econômicos e financeiros, apenas percebem os ativos ambientais como recursos econômicos a serem apropriados. O manejo sustentável dos recursos naturais e a agricultura familiar não estão na agenda de compromissos dos grandes interesses econômicos e, por conseqüência, também não estão na agenda do governo.
O governo mantém a opção pelo incentivo à produção e exportação de produtos primários como cláusula pétrea da economia nacional. Como em outras áreas, é a versão século XXI do modelo colonial, no qual as colônias exportavam produtos primários (com pequeno valor agregado) para beneficiamento pelas metrópoles, as quais os reexportavam (com grande valor agregado). Foi assim que as colônias financiaram o desenvolvimento dos países colonialistas e ainda é assim que o terceiro mundo financia os países que se dizem desenvolvidos.
Esta pauta colonial de exportação está na origem de tantos desencontros e ambigüidades, tal como a encontrada na produção do biodiesel, cujo programa foi lançado com o argumento de que seria a "redenção" da agricultura familiar no norte e nordeste do país. No entanto, o biodiesel é majoritariamente produzido a partir da soja (70% do total), passando ao largo da agricultura familiar. Mostrou-se como mais um projeto para beneficiar os mesmos de sempre, como sempre.
Precisamos iniciar as discussões sobre este modelo econômico escorado na exportação de produtos primários, com destaque para minério, alumínio primário, carne e grãos. É necessário questionar a quem serve este modelo e a quem beneficia.
Ou questionamos e encontramos um outro modelo de desenvolvimento ou continuaremos no modelo colonial de exportação de produtos primários. É o que fazemos desde o descobrimento (apenas mudamos de senhores ao longo do tempo) e ainda não chegamos lá.
Parafraseando o jornalista e ambientalista Washington Novaes, se devastação e exploração irracional de recursos naturais levasse ao desenvolvimento, já seríamos o mais rico e desenvolvido país do mundo.
*Henrique Cortez é ambientalista e coordenador do portal EcoDebate. Este texto foi publicado no sítio Correio da Cidadania
"Site Controvérsia" - 19/09/08
MST - Geografia - 19/9 - nº 3084
Ofensivas do capital na agricultura brasileira
por peruano — última modificação 2008-09-18 21:00
Péricles de Oliveira
ADM será sócia de duas usinas
A empresa estadunidense Archer Daniels Midland (ADM), uma das grandes na produção de grãos, anunciou parceria com um grupo do fazendeiro da família Cabrera, da região de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. E por esse acordo estão investindo em duas usinas de etanol. Uma no município de Jataí e a outra em Itarumã, ambas em Goiás. Os dois projetos prevêem a moagem de mais de 3 milhões de toneladas de cana para etanol.
Coreanos investirão em biodiesel no Paraná
Um grupo de vinte empresas da Coréia do Sul anunciou que está investindo 30 milhões de dólares para parcerias na produção de óleo combustível, a partir da soja, no Paraná. Segundo Hong Soon, presidente da Câmara de Comércio com o Brasil, há uma tendência a aumentar esses negócios, já que a legislação coreana vai obrigar a colocar 3% de óleos vegetais no diesel. Por conta disso, por exemplo, a empresa Samsung já investiu 1,6 bilhão de dólares na Indonésia, para produzir óleo combustível a partir do dendê.
Bioclean Energy investe no Mato Grosso e Bahia
A empresa Bioclean, braço financeiro do grupo estrangeiro Emdurance Capital Partners, anunciou que vai investir 300 milhões de dólares em duas unidades de beneficiamento de óleo de soja e de caroço de algodão para óleo combustível. As instalações serão no Mato Grosso e na Bahia. A unidade baiana está sendo construída no município de Luís Eduardo Magalhães, e a do Mato Grosso, em Rondonópolis.
BNDES financia nova unidade da Brasil Bioenergia
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou liberação de empréstimo de R$ 160 milhões para a empresa Brasil Bioernergia construir uma unidade de óleo vegetal a partir da soja, no município de Nova Andradina (MS). O empreendimento gerará apenas 140 empregos na fábrica, mas, segundo seus diretores, vai comprar 10% da matéria-prima de pequenos agricultores. Por conta disso, sairá com selo de combustível social, a ser fornecido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Nova usina do grupo LDC bioenergia no MS
A empresa LDC Bioenergia, do grupo francês Louis Dreyfus, um dos grandes conglomerados mundiais de grãos, anunciou a inaguração de uma nova usina de álcool, no município de Rio Brilhante (MS). A unidade esmagará 4,5 milhões toneladas por ano.
BNDES financiará grupo Brenco
Há alguns meses, um grupo de empresas de pesos-pesados da economia internacional, como o ex-presidente Bill Clinton, Steve Case (ex-AOL),ß Time Wanere (dono da CNN) e James Wolfenshonson, ex-presidente do Banco Mundial, organizaram o fundo de investimentos Brenco para atuar no etanol brasileiro. Agora, o BNDES anuncia que vai liberar R$ 1,23 bilhão para o grupo implantar quatro usinas de etanol. As usinas estarão nos municípios de Alto Taquari (MT), onde sairá um alcooduto para o porto de Paranaguá (PR), em Costa Rica (MS), e no município de Mineros (GO), que terá duas usinas. A novidade na operação é de que o BNDES anunciou que parte será como empréstimo e outra parte o banco manterá como 15% a 20% das ações do grupo. O que chama atenção é que o BNDES anunciou também que, desde 2004, quando começou a se expandir o etanol, o banco já liberou nada menos que R$ 10 bilhões para financiar a instalação de usinas de etanol em todo Brasil. Este ano, o banco já liberou R$ 2,7 bilhões.
ADM vence leilão da Petrobras Combustível
Apesar da promessa do governo Lula, de que o programa de biodiesel da Petrobras não concorreria com alimentos e que priorizaria a pequena agricultura para distribuir renda, não é isso que acontece na prática. A Agência Nacional de Petróleo anunciou que o último leilão realizado para venda de óleo vegetal foi ganho pela transnacional ADM, que vendeu 33,9 milhões de litros de óleo de soja. Assim, o óleo a ser misturado no diesel é de soja, alimento, e o fornecedor, uma empresa tranasnacional estadunidense.
Péricles de Oliveira é economista
"Brasil de Fato"
Péricles de Oliveira
ADM será sócia de duas usinas
A empresa estadunidense Archer Daniels Midland (ADM), uma das grandes na produção de grãos, anunciou parceria com um grupo do fazendeiro da família Cabrera, da região de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. E por esse acordo estão investindo em duas usinas de etanol. Uma no município de Jataí e a outra em Itarumã, ambas em Goiás. Os dois projetos prevêem a moagem de mais de 3 milhões de toneladas de cana para etanol.
Coreanos investirão em biodiesel no Paraná
Um grupo de vinte empresas da Coréia do Sul anunciou que está investindo 30 milhões de dólares para parcerias na produção de óleo combustível, a partir da soja, no Paraná. Segundo Hong Soon, presidente da Câmara de Comércio com o Brasil, há uma tendência a aumentar esses negócios, já que a legislação coreana vai obrigar a colocar 3% de óleos vegetais no diesel. Por conta disso, por exemplo, a empresa Samsung já investiu 1,6 bilhão de dólares na Indonésia, para produzir óleo combustível a partir do dendê.
Bioclean Energy investe no Mato Grosso e Bahia
A empresa Bioclean, braço financeiro do grupo estrangeiro Emdurance Capital Partners, anunciou que vai investir 300 milhões de dólares em duas unidades de beneficiamento de óleo de soja e de caroço de algodão para óleo combustível. As instalações serão no Mato Grosso e na Bahia. A unidade baiana está sendo construída no município de Luís Eduardo Magalhães, e a do Mato Grosso, em Rondonópolis.
BNDES financia nova unidade da Brasil Bioenergia
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou liberação de empréstimo de R$ 160 milhões para a empresa Brasil Bioernergia construir uma unidade de óleo vegetal a partir da soja, no município de Nova Andradina (MS). O empreendimento gerará apenas 140 empregos na fábrica, mas, segundo seus diretores, vai comprar 10% da matéria-prima de pequenos agricultores. Por conta disso, sairá com selo de combustível social, a ser fornecido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Nova usina do grupo LDC bioenergia no MS
A empresa LDC Bioenergia, do grupo francês Louis Dreyfus, um dos grandes conglomerados mundiais de grãos, anunciou a inaguração de uma nova usina de álcool, no município de Rio Brilhante (MS). A unidade esmagará 4,5 milhões toneladas por ano.
BNDES financiará grupo Brenco
Há alguns meses, um grupo de empresas de pesos-pesados da economia internacional, como o ex-presidente Bill Clinton, Steve Case (ex-AOL),ß Time Wanere (dono da CNN) e James Wolfenshonson, ex-presidente do Banco Mundial, organizaram o fundo de investimentos Brenco para atuar no etanol brasileiro. Agora, o BNDES anuncia que vai liberar R$ 1,23 bilhão para o grupo implantar quatro usinas de etanol. As usinas estarão nos municípios de Alto Taquari (MT), onde sairá um alcooduto para o porto de Paranaguá (PR), em Costa Rica (MS), e no município de Mineros (GO), que terá duas usinas. A novidade na operação é de que o BNDES anunciou que parte será como empréstimo e outra parte o banco manterá como 15% a 20% das ações do grupo. O que chama atenção é que o BNDES anunciou também que, desde 2004, quando começou a se expandir o etanol, o banco já liberou nada menos que R$ 10 bilhões para financiar a instalação de usinas de etanol em todo Brasil. Este ano, o banco já liberou R$ 2,7 bilhões.
ADM vence leilão da Petrobras Combustível
Apesar da promessa do governo Lula, de que o programa de biodiesel da Petrobras não concorreria com alimentos e que priorizaria a pequena agricultura para distribuir renda, não é isso que acontece na prática. A Agência Nacional de Petróleo anunciou que o último leilão realizado para venda de óleo vegetal foi ganho pela transnacional ADM, que vendeu 33,9 milhões de litros de óleo de soja. Assim, o óleo a ser misturado no diesel é de soja, alimento, e o fornecedor, uma empresa tranasnacional estadunidense.
Péricles de Oliveira é economista
"Brasil de Fato"
Soberania: Brasil importa agrotóxicos proibidos na União Européia
por peruano — última modificação 2008-09-18 20:56
Anvisa afirma que a decisão foi adotada sob pressão de interesses econômicos
Juliano Domingues
de São Paulo (SP)
O agronegócio brasileiro pode ser responsável por alguns casos de câncer adquiridos pela população. Até julho, o país importou mais de 6 mil toneladas de substâncias que foram proibidas nos países onde são produzidas. Trata-se de componentes utilizados para fabricar agrotóxicos utilizados em culturas de 24 tipos de alimentos brasileiros, como frutas, verduras e grãos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que, além de câncer, esses produtos podem causar problemas no sistema nervoso e reprodutivo.
As substâncias foram importadas da União Européia (UE). A assessoria de imprensa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que o processo de avaliação de periculosidade dessas substâncias começou em 2006, época em que várias delas já haviam sido importadas da UE. No entanto, o trabalho de avaliação foi interrompido por ordem de uma liminar expedida pela Justiça Federal de Brasília, em favor do Sindicato das Indústrias de Defensivos Agrícolas (Sindag).
A Anvisa afirma que a decisão foi adotada sob pressão de interesses econômicos. A Agência também informou que essa venda de substâncias da UE é uma tática dos europeus de desovar em outros países, como o Brasil, os estoques de produtos que foram proibidos dentro do bloco.
Diante da atual pressão do governo e dos alertas dados pela OMS, a Anvisa afirma que adotará atitudes para reavaliar o registro de nove substâncias. Elas fazem parte da composição de 99 agrotóxicos.
(Radioagência NP)
Quanto
6 mil toneladas de venenos proibidos nos países que os produzem foram importados até julho
"Brasil de Fato"
Anvisa afirma que a decisão foi adotada sob pressão de interesses econômicos
Juliano Domingues
de São Paulo (SP)
O agronegócio brasileiro pode ser responsável por alguns casos de câncer adquiridos pela população. Até julho, o país importou mais de 6 mil toneladas de substâncias que foram proibidas nos países onde são produzidas. Trata-se de componentes utilizados para fabricar agrotóxicos utilizados em culturas de 24 tipos de alimentos brasileiros, como frutas, verduras e grãos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que, além de câncer, esses produtos podem causar problemas no sistema nervoso e reprodutivo.
As substâncias foram importadas da União Européia (UE). A assessoria de imprensa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que o processo de avaliação de periculosidade dessas substâncias começou em 2006, época em que várias delas já haviam sido importadas da UE. No entanto, o trabalho de avaliação foi interrompido por ordem de uma liminar expedida pela Justiça Federal de Brasília, em favor do Sindicato das Indústrias de Defensivos Agrícolas (Sindag).
A Anvisa afirma que a decisão foi adotada sob pressão de interesses econômicos. A Agência também informou que essa venda de substâncias da UE é uma tática dos europeus de desovar em outros países, como o Brasil, os estoques de produtos que foram proibidos dentro do bloco.
Diante da atual pressão do governo e dos alertas dados pela OMS, a Anvisa afirma que adotará atitudes para reavaliar o registro de nove substâncias. Elas fazem parte da composição de 99 agrotóxicos.
(Radioagência NP)
Quanto
6 mil toneladas de venenos proibidos nos países que os produzem foram importados até julho
"Brasil de Fato"
Mulheres, papel chave na conquista da soberania alimentar e energética
por peruano — última modificação 2008-09-18 20:52
Integrantes de organizações do campo e cidade do país se reuniram para debater alternativas aos atuais modelos
da Redação
Quanto “QUEREMOS que as mulheres se apropriem do tema da energia. Precisamos construir uma visão crítica do modelo que temos e buscar uma alternativa a ele, a partir das nossas experiências, da nossa voz”. A fala de Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres, descreve um dos maiores objetivos do Encontro Nacional de Mulheres em Luta por Soberania Alimentar e Energética, que aconteceu em Belo Horizonte (MG), entre os dias 28 e 31 de agosto. Junto com a marcha, organizaram a atividade as mulheres da Via Campesina.
De acordo com a organização, cerca de 500 mulheres do campo e da cidade participaram dos debates que abordaram desde temas mais gerais, como as formas de luta das mulheres no sistema capitalista patriarcal, os modelos energético, agrícola e alimentar, até questões mais específicas, como a privatização da água, os monocultivos e a produção de agroenergia. “Estamos aqui dentro do contexto da luta popular pela transformação.
Queremos germinar aqui o projeto popular para o Brasil, com o olhar feminista”, resume Sarai Brixner, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
Para Soniamara Maranho, da coordenação pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o encontro contribuiu para unificar a estratégia dos movimentos, o conceito de feminismo e avançar na qualificação das lutas. “Avançamos para a construção de um projeto popular, a partir da organização das mulheres da classe trabalhadora”, opina.
Soberania
A temática geral do encontro – alimentação e energia – pautou dois debates extremamente importantes e atuais, em tempos de alta dos preços dos alimentos e do petróleo. Esses assuntos têm ganhado cada vez mais destaque entre movimentos populares não só do Brasil, mas de todo continente latino-americano, por permitir apontar a insustentabilidade do sistema capitalista.
Nalu Faria entende que o interesse das mulheres pelo tema debatido foi um dos pontos positivos. “A questão energética e alimentar é estratégica e está ligada ao trabalho cotidiano das companheiras. O encontro mostrou que existem alternativas, que as coisas não estão dadas e que as mulheres podem se envolver e se fortalecer cada vez mais com as lutas concretas”, avalia.
Para Lourdes Vicente, da coordenação do encontro pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “aqui, nós percebemos que os problemas vivenciados pelas mulheres da cidade são os mesmos vivenciados pelas camponesas. A questão energética e alimentar é comum às nossas companheiras. Para tanto, nada melhor que bandeiras unificadas. Nesse sentido, foram apontadas algumas lutas para o próximo período, a partir da necessidade de as mulheres se organizarem para enfrentar a realidade”, aponta.
Opressão
Duplamente oprimidas dentro de uma sociedade capitalista e patriarcal, as mulheres também são as que mais sofrem com a falta de soberania alimentar e energética. Nalu Faria afirma que as mulheres sentem no cotidiano que, além de serem exploradas pela condição de trabalhadoras, também o são pela questão de gênero: a base do sistema capitalista está posto sobre a exploração de classe, de raça e de gênero. “Portanto, não basta lutarmos contra o sistema, se não lutarmos contra a exploração de gênero, e isso só vai acontecer se nos organizarmos enquanto mulheres, avançando sobre a desigualdade a que somos expostas”, conclui.
Ivonete Tonin, representando a Via Campesina, exemplifica como essa questão se revela no campo, na luta entre o agronegócio e a agricultura camponesa. De um lado, a luta para que o meio rural seja um espaço de produção de alimento e vida digna e, de outro, o campo como espaço de geração de lucro pela exploração da terra, no qual o monocultivo de eucaliptos, por exemplo, gera um único emprego numa área de 185 hectares plantados.
De acordo com ela, no Rio Grande do Sul, o monocultivo de soja expulsou do campo cerca de 127 mil pessoas. A maioria delas são mulheres, que acabam sendo domésticas nas cidades e arredores. O agronegócio é o responsável para que, cada vez mais, a pobreza no campo tenha o rosto das mulheres, com 79,8% delas não tendo renda fi xa, segundo dados do Dieese/Nead.
Oficinas
Durante o evento, as mulheres – representando cerca de 20 organizações – dividiramse em nove grupos temáticos, com objetivo de trocar experiências de alternativas que já estão sendo implementadas na prática. Técnicas de convivência com o Semi-árido, criação de sementes criolas, agroecologia e agricultura urbana, ocupações urbanas e resistência à ação das transnacionais foram alguns dos temas.
Com relação ao Semi-árido, um dos depoimentos foi o de Francisca das Chagas, mais conhecida como Chaguinha. A mudança na vida dela começou com a chegada de 30 cisternas ao assentamento Independência, no Rio Grande do Norte, onde vive. Para conquistar a cisterna, ela precisava participar de um curso de cisterneira (também conhecido como curso para mulheres pedreiras). No curso, ela não só aprendeu a construir cisternas, como também a vencer preconceitos. “Hoje eu sou referência quando o assunto é cisterna, mas no começo ninguém acreditava que eu seria capaz. Também precisei enfrentar meu marido, que não permitia que eu viajasse e não queria que eu trabalhasse fora. Hoje é tudo diferente. Fazemos tudo junto”, relata.
Chaguinha ainda complementa, dizendo que, além da autonomia, conquistou o direito de ter água de qualidade em casa. “Hoje, quando acordo, vejo minha cisterna bem linda no quintal, e não preciso mais buscar água distante de casa”, conta. (Com informações da Equipe de Comunicação do Encontro Nacional por Soberania Alimentar e Energética, Alexania Rossato, Fernanda Cruz, Joana Tavares, Patrícia Prezotto, Lívia Bacelete, Nina Fideles e Viviane Brochardt – http://www.sof.org.br/encontro).
"Brasil de Fato"
Integrantes de organizações do campo e cidade do país se reuniram para debater alternativas aos atuais modelos
da Redação
Quanto “QUEREMOS que as mulheres se apropriem do tema da energia. Precisamos construir uma visão crítica do modelo que temos e buscar uma alternativa a ele, a partir das nossas experiências, da nossa voz”. A fala de Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres, descreve um dos maiores objetivos do Encontro Nacional de Mulheres em Luta por Soberania Alimentar e Energética, que aconteceu em Belo Horizonte (MG), entre os dias 28 e 31 de agosto. Junto com a marcha, organizaram a atividade as mulheres da Via Campesina.
De acordo com a organização, cerca de 500 mulheres do campo e da cidade participaram dos debates que abordaram desde temas mais gerais, como as formas de luta das mulheres no sistema capitalista patriarcal, os modelos energético, agrícola e alimentar, até questões mais específicas, como a privatização da água, os monocultivos e a produção de agroenergia. “Estamos aqui dentro do contexto da luta popular pela transformação.
Queremos germinar aqui o projeto popular para o Brasil, com o olhar feminista”, resume Sarai Brixner, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
Para Soniamara Maranho, da coordenação pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o encontro contribuiu para unificar a estratégia dos movimentos, o conceito de feminismo e avançar na qualificação das lutas. “Avançamos para a construção de um projeto popular, a partir da organização das mulheres da classe trabalhadora”, opina.
Soberania
A temática geral do encontro – alimentação e energia – pautou dois debates extremamente importantes e atuais, em tempos de alta dos preços dos alimentos e do petróleo. Esses assuntos têm ganhado cada vez mais destaque entre movimentos populares não só do Brasil, mas de todo continente latino-americano, por permitir apontar a insustentabilidade do sistema capitalista.
Nalu Faria entende que o interesse das mulheres pelo tema debatido foi um dos pontos positivos. “A questão energética e alimentar é estratégica e está ligada ao trabalho cotidiano das companheiras. O encontro mostrou que existem alternativas, que as coisas não estão dadas e que as mulheres podem se envolver e se fortalecer cada vez mais com as lutas concretas”, avalia.
Para Lourdes Vicente, da coordenação do encontro pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), “aqui, nós percebemos que os problemas vivenciados pelas mulheres da cidade são os mesmos vivenciados pelas camponesas. A questão energética e alimentar é comum às nossas companheiras. Para tanto, nada melhor que bandeiras unificadas. Nesse sentido, foram apontadas algumas lutas para o próximo período, a partir da necessidade de as mulheres se organizarem para enfrentar a realidade”, aponta.
Opressão
Duplamente oprimidas dentro de uma sociedade capitalista e patriarcal, as mulheres também são as que mais sofrem com a falta de soberania alimentar e energética. Nalu Faria afirma que as mulheres sentem no cotidiano que, além de serem exploradas pela condição de trabalhadoras, também o são pela questão de gênero: a base do sistema capitalista está posto sobre a exploração de classe, de raça e de gênero. “Portanto, não basta lutarmos contra o sistema, se não lutarmos contra a exploração de gênero, e isso só vai acontecer se nos organizarmos enquanto mulheres, avançando sobre a desigualdade a que somos expostas”, conclui.
Ivonete Tonin, representando a Via Campesina, exemplifica como essa questão se revela no campo, na luta entre o agronegócio e a agricultura camponesa. De um lado, a luta para que o meio rural seja um espaço de produção de alimento e vida digna e, de outro, o campo como espaço de geração de lucro pela exploração da terra, no qual o monocultivo de eucaliptos, por exemplo, gera um único emprego numa área de 185 hectares plantados.
De acordo com ela, no Rio Grande do Sul, o monocultivo de soja expulsou do campo cerca de 127 mil pessoas. A maioria delas são mulheres, que acabam sendo domésticas nas cidades e arredores. O agronegócio é o responsável para que, cada vez mais, a pobreza no campo tenha o rosto das mulheres, com 79,8% delas não tendo renda fi xa, segundo dados do Dieese/Nead.
Oficinas
Durante o evento, as mulheres – representando cerca de 20 organizações – dividiramse em nove grupos temáticos, com objetivo de trocar experiências de alternativas que já estão sendo implementadas na prática. Técnicas de convivência com o Semi-árido, criação de sementes criolas, agroecologia e agricultura urbana, ocupações urbanas e resistência à ação das transnacionais foram alguns dos temas.
Com relação ao Semi-árido, um dos depoimentos foi o de Francisca das Chagas, mais conhecida como Chaguinha. A mudança na vida dela começou com a chegada de 30 cisternas ao assentamento Independência, no Rio Grande do Norte, onde vive. Para conquistar a cisterna, ela precisava participar de um curso de cisterneira (também conhecido como curso para mulheres pedreiras). No curso, ela não só aprendeu a construir cisternas, como também a vencer preconceitos. “Hoje eu sou referência quando o assunto é cisterna, mas no começo ninguém acreditava que eu seria capaz. Também precisei enfrentar meu marido, que não permitia que eu viajasse e não queria que eu trabalhasse fora. Hoje é tudo diferente. Fazemos tudo junto”, relata.
Chaguinha ainda complementa, dizendo que, além da autonomia, conquistou o direito de ter água de qualidade em casa. “Hoje, quando acordo, vejo minha cisterna bem linda no quintal, e não preciso mais buscar água distante de casa”, conta. (Com informações da Equipe de Comunicação do Encontro Nacional por Soberania Alimentar e Energética, Alexania Rossato, Fernanda Cruz, Joana Tavares, Patrícia Prezotto, Lívia Bacelete, Nina Fideles e Viviane Brochardt – http://www.sof.org.br/encontro).
"Brasil de Fato"
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Camaroneses se rebelam contra produtores de banana
3/9/2008
Philippe Bernard
Com o boné afundado sobre o crânio reluzente de suor como sinônimo de rigor, Amédée Bessengue, 26 anos, sete dos quais como empregado das plantações de banana, só admite que, naqueles dias, estava "em greve". Sobre a forma como empregou seu tempo durante os motins, permanece vago. Mas lembra-se perfeitamente do que os manifestantes gritavam: "Queremos que os franceses nos paguem bem. Afinal, estamos em casa, não somos escravos". Três meses depois da pilhagem nas plantações, uma pichação permanece sobre o muro de um alpendre: "Paguem 100 mil francos (150 euros) ao último empregado".
Era o fim do mês de fevereiro. Camarões estava em revolta, e com ele a capital da banana, a 80 quilômetros a oeste do porto de Douala. Durante quatro dias de greve, barricadas e pilhagens, Njombe Pneja, localizada no meio de colinas verdejantes, viveu sob estado de sítio. Nove jovens foram mortos pelo exército e ainda hoje a cidade está em estado de choque. As bocas continuam fechadas, os olhares furtivos, e os encontros discretos, com medo de serem "fichados" - denunciados aos militares.
O prefeito, Paul-Eric Kingue, está na prisão desde 29 de fevereiro. Ele foi suspenso de suas funções. Oficialmente, foi acusado de ter incitado os jovens à revolta e de desviar verbas. Mas a maioria da população duvida disso. Paul-Eric é um homem corajoso. Ficou escandalizado com os salários pagos pelas companhias que exploram os bananais - 25 mil francos (37,50 euros) por mês. Denunciou os privilégios fiscais e as isenções de impostos que beneficiavam as companhias, todas dirigidas por franceses. Logo, defendia o que os camaroneses chamam de "baixo povo".
Para a população não resta dúvida: foram as companhias que conseguiram a destituição do prefeito. Depois de sua prisão, esse pilar do partido presidencial, ultradominante, enviou uma carta aberta ao chefe de Estado, Paul Biya, para justificar sua cruzada. Ele descreveu "o paradoxo desconcertante" de Njombe Penja, "uma região tão rica com uma população tão pobre".
Aturdidos pela repressão, os jovens não admitem de pronto que participaram dos motins. Quanto aos franceses produtores de bananas, hesitaram antes de admitir o evidente: que as companhias que dirigem haviam se tornado alvo.
A violência contra o patrão, o "explorador"? O francês? O branco? É difícil separar as várias camadas do ressentimento. "Os protestos não eram conscientemente dirigidos contra as companhias francesas. As pessoas expressaram suas frustrações, pegaram o que estava à mão, queriam punir o governo de Yaoundé", diz Pierre Moulima, diretor de recursos humanos da SPM (Sociedade de Plantações de Mbanga). Mas logo admitiu: "Nos tratam constantemente como 'franceses colonialistas', nos acusam de confiscar as terras e de reduzir a mão de obra camaronesa à escravidão". Depois, mais calmo, disse: "As pessoas que sustentam isso não são educadas".
Em seu escritório climatizado, onde os vidros e o material de informática tiveram de ser totalmente substituídos depois do motim, Christophe Bresse, francês, diretor das plantações da SPM, folheia o álbum onde foram arquivadas as fotos do vandalismo. Veículos e equipamentos agrícolas incendiados, bombas de irrigação destruídas, armazéns pilhados: "Foi muito violento. Eles queriam destruir as máquinas de produção, e a pilhagem foi sistemática. Nós nos tornamos alvo. Mas eles atiraram nos próprios pés, afinal, quem manda aqui?"
A poucos quilômetros dali, a sociedade bananeira PHP, filial da Companhia Frutífera (da qual a gigante americana Dole é dona de 37% do capital), a mais importante e mais temida da região, as Cervejarias de Camarões e a usina de água mineral Tangui, todas sob direção francesa, tiveram um destino parecido. Seus funcionários e familiares, cerca de vinte pessoas no total, foram evacuados por avião para Douala no segundo dia de violência.
Ao prejuízo material, estimado em 1,2 bilhão de francos CFA (1,8 milhões de euros) pela SPM, soma-se a destruição de vários hectares de bananais, cortados a facão, instrumento de trabalho usual, por centenas de jovens. Principalmente "vândalos desempregados" que fugiram carregando pencas de bananas, segundo os dirigentes, que por sua vez admitem que alguns de seus próprios empregados fizeram parte dos ataques.
"A maior parte de nossos empregados defendeu as instalações. Na situação difícil em que eles se encontram, estão bem contentes de receber regularmente um salário irrisório", diz Joseph Fochiyé, que compara o prefeito encarcerado a um "líder de quadrilha". Na cidade ou nas plantações, a passagem do 4 X 4 desse especialista dos bananais, responsável pela produção, detona reações de inquietude. Todos sabem que o pai dele, Jean, foi um diretor temido dos serviços de informação camaroneses sob o governo dos presidentes Ahidjo e Biya. "Seu pai metia medo, mas ele não; durante o motim, ficou escondido em casa como todo mundo", diz Guillaume Ranson, diretor geral adjunto da SPM.
A perder de vista, por vários quilômetros, fileiras de bananeiras sobem as colinas, cobertas de manchas azuis: sacos plásticos que protegem as plantações de insetos e aceleram o amadurecimento. A plantação, a irrigação, o crescimento das plantas, o florescimento e o desenvolvimento de frutos, voltados para a exportação para a União Européia, exigem o cuidado constante e minucioso por parte de milhares de trabalhadores: 2 mil na SPM e 6 mil na PHP.
"O salário não é bom", confirma Elysée Mbelle, um jovem plantador. "Não é normal que tenhamos fome aqui enquanto alimentamos os franceses". Depois dos motins, os salários receberam um aumento simbólico, o salário mínimo passou a 31 mil francos (46,50 euros) sem bônus, com o qual pode chegar a 45 mil francos (67,50 euros), segundo a direção da SPM.
Outras testemunhas atribuem a cólera que se manifestou à frustração devido à produção ser quase que inteiramente exportada. "Muitos empregados se fizeram demitir por roubar bananas. A direção não as fornece. Somente os refugos são vendidos nas feiras. Eles quiseram se vingar". As condições de trabalho (doze horas pagas, oito segundo alguns), a remuneração fixa, sem considerar o tempo, e a disciplina de ferro alimentou as frustrações. "Se você pede um intervalo por causa do calor, o chefe diz: 'Ou você volta, ou será advertido por recusar-se a trabalhar'", diz um trabalhador temporário. Perfeitamente ciente dessa situação, o arcebispo de Douala, Christian Tumi, que nunca foi conivente com as autoridades, resume sobriamente: "Em Njombe Penja, os direitos fundamentais dos cidadãos não são respeitados".
Segundo a Ação Cristã para Abolição da Tortura (ACAT-Littoral), a exploração das terras cedidas ou alugadas pelos camponeses locais às sociedades bananeiras por uma soma que não é reajustada há décadas aumentou o descontentamento dos revoltosos. "Meu pai vendeu sua terra nos anos 70 sob a promessa de que seus filhos seriam assalariados a vida toda, e não deixados por conta própria. Ele se arrependeu, já que constatou que a pobreza não recuou", testemunha um dos cidadãos. Além do mais, há casos de intoxicações alimentares ligados à aspersão aérea de produtos fitossanitários. Ao denunciar os "maus-tratos sob os quais vivem a população de Njombe Penja há anos", a Acat denuncia "a conivência dos investidores franceses, pouco conscientes do bem-estar dos camaroneses".
Na entrada de cada fileira de bananeiras, destacam-se pequenos panfletos. Eles levam impressa a bandeira estrelada da União Européia. As companhias bananeiras, principalmente as que operam em Njombe Penja, de fato recebem subsídios a título de "apoio ao setor bananeiro" do país, que exporta 300 mil toneladas de banana por ano. Entre 2001 e 2005, 24 milhões de euros foram destinados "à política de desenvolvimento econômico e de luta contra a pobreza", diz a representação da União Européia em Yaoundé. Certificados Iso e Globalgap também foram concedidos às mesmas companhias. O primeiro atesta o "gerenciamento ambiental", e o segundo as "boas práticas agrícolas".
Um dirigente do setor assegura que paga "todos seus impostos". Mas admite que sua companhia recebe, além das subvenções da UE, uma isenção de taxas por parte das autoridades camaronesas por conta de realizar atividade em área "socialmente sensível". Esse imposto deveria revertido para as comunidades extremamente pobres. Mas o sistema fiscal camaronês, gangrenado pela corrupção, não tem nada de transparente.
"As companhias não pagam impostos nem taxas há trinta anos", afirma o prefeito M. Kingue, por sua vez. Em setembro de 2007, ele denunciou essa situação ao primeiro-ministro e obteve uma reavaliação fiscal. Pouco depois, os patrões visados "ameaçaram me matar ou me prender", escreveu ele de sua cela. Pressionado, um dos interessados alega que sua companhia faz doações diretamente à comunidade, ataca as "exigências de dinheiro" do prefeito e refuta suas acusações: "Puro folclore camaronês!"
"Controvérsia"
Le Monde - Nação - 3/9 - nº 2935
Philippe Bernard
Com o boné afundado sobre o crânio reluzente de suor como sinônimo de rigor, Amédée Bessengue, 26 anos, sete dos quais como empregado das plantações de banana, só admite que, naqueles dias, estava "em greve". Sobre a forma como empregou seu tempo durante os motins, permanece vago. Mas lembra-se perfeitamente do que os manifestantes gritavam: "Queremos que os franceses nos paguem bem. Afinal, estamos em casa, não somos escravos". Três meses depois da pilhagem nas plantações, uma pichação permanece sobre o muro de um alpendre: "Paguem 100 mil francos (150 euros) ao último empregado".
Era o fim do mês de fevereiro. Camarões estava em revolta, e com ele a capital da banana, a 80 quilômetros a oeste do porto de Douala. Durante quatro dias de greve, barricadas e pilhagens, Njombe Pneja, localizada no meio de colinas verdejantes, viveu sob estado de sítio. Nove jovens foram mortos pelo exército e ainda hoje a cidade está em estado de choque. As bocas continuam fechadas, os olhares furtivos, e os encontros discretos, com medo de serem "fichados" - denunciados aos militares.
O prefeito, Paul-Eric Kingue, está na prisão desde 29 de fevereiro. Ele foi suspenso de suas funções. Oficialmente, foi acusado de ter incitado os jovens à revolta e de desviar verbas. Mas a maioria da população duvida disso. Paul-Eric é um homem corajoso. Ficou escandalizado com os salários pagos pelas companhias que exploram os bananais - 25 mil francos (37,50 euros) por mês. Denunciou os privilégios fiscais e as isenções de impostos que beneficiavam as companhias, todas dirigidas por franceses. Logo, defendia o que os camaroneses chamam de "baixo povo".
Para a população não resta dúvida: foram as companhias que conseguiram a destituição do prefeito. Depois de sua prisão, esse pilar do partido presidencial, ultradominante, enviou uma carta aberta ao chefe de Estado, Paul Biya, para justificar sua cruzada. Ele descreveu "o paradoxo desconcertante" de Njombe Penja, "uma região tão rica com uma população tão pobre".
Aturdidos pela repressão, os jovens não admitem de pronto que participaram dos motins. Quanto aos franceses produtores de bananas, hesitaram antes de admitir o evidente: que as companhias que dirigem haviam se tornado alvo.
A violência contra o patrão, o "explorador"? O francês? O branco? É difícil separar as várias camadas do ressentimento. "Os protestos não eram conscientemente dirigidos contra as companhias francesas. As pessoas expressaram suas frustrações, pegaram o que estava à mão, queriam punir o governo de Yaoundé", diz Pierre Moulima, diretor de recursos humanos da SPM (Sociedade de Plantações de Mbanga). Mas logo admitiu: "Nos tratam constantemente como 'franceses colonialistas', nos acusam de confiscar as terras e de reduzir a mão de obra camaronesa à escravidão". Depois, mais calmo, disse: "As pessoas que sustentam isso não são educadas".
Em seu escritório climatizado, onde os vidros e o material de informática tiveram de ser totalmente substituídos depois do motim, Christophe Bresse, francês, diretor das plantações da SPM, folheia o álbum onde foram arquivadas as fotos do vandalismo. Veículos e equipamentos agrícolas incendiados, bombas de irrigação destruídas, armazéns pilhados: "Foi muito violento. Eles queriam destruir as máquinas de produção, e a pilhagem foi sistemática. Nós nos tornamos alvo. Mas eles atiraram nos próprios pés, afinal, quem manda aqui?"
A poucos quilômetros dali, a sociedade bananeira PHP, filial da Companhia Frutífera (da qual a gigante americana Dole é dona de 37% do capital), a mais importante e mais temida da região, as Cervejarias de Camarões e a usina de água mineral Tangui, todas sob direção francesa, tiveram um destino parecido. Seus funcionários e familiares, cerca de vinte pessoas no total, foram evacuados por avião para Douala no segundo dia de violência.
Ao prejuízo material, estimado em 1,2 bilhão de francos CFA (1,8 milhões de euros) pela SPM, soma-se a destruição de vários hectares de bananais, cortados a facão, instrumento de trabalho usual, por centenas de jovens. Principalmente "vândalos desempregados" que fugiram carregando pencas de bananas, segundo os dirigentes, que por sua vez admitem que alguns de seus próprios empregados fizeram parte dos ataques.
"A maior parte de nossos empregados defendeu as instalações. Na situação difícil em que eles se encontram, estão bem contentes de receber regularmente um salário irrisório", diz Joseph Fochiyé, que compara o prefeito encarcerado a um "líder de quadrilha". Na cidade ou nas plantações, a passagem do 4 X 4 desse especialista dos bananais, responsável pela produção, detona reações de inquietude. Todos sabem que o pai dele, Jean, foi um diretor temido dos serviços de informação camaroneses sob o governo dos presidentes Ahidjo e Biya. "Seu pai metia medo, mas ele não; durante o motim, ficou escondido em casa como todo mundo", diz Guillaume Ranson, diretor geral adjunto da SPM.
A perder de vista, por vários quilômetros, fileiras de bananeiras sobem as colinas, cobertas de manchas azuis: sacos plásticos que protegem as plantações de insetos e aceleram o amadurecimento. A plantação, a irrigação, o crescimento das plantas, o florescimento e o desenvolvimento de frutos, voltados para a exportação para a União Européia, exigem o cuidado constante e minucioso por parte de milhares de trabalhadores: 2 mil na SPM e 6 mil na PHP.
"O salário não é bom", confirma Elysée Mbelle, um jovem plantador. "Não é normal que tenhamos fome aqui enquanto alimentamos os franceses". Depois dos motins, os salários receberam um aumento simbólico, o salário mínimo passou a 31 mil francos (46,50 euros) sem bônus, com o qual pode chegar a 45 mil francos (67,50 euros), segundo a direção da SPM.
Outras testemunhas atribuem a cólera que se manifestou à frustração devido à produção ser quase que inteiramente exportada. "Muitos empregados se fizeram demitir por roubar bananas. A direção não as fornece. Somente os refugos são vendidos nas feiras. Eles quiseram se vingar". As condições de trabalho (doze horas pagas, oito segundo alguns), a remuneração fixa, sem considerar o tempo, e a disciplina de ferro alimentou as frustrações. "Se você pede um intervalo por causa do calor, o chefe diz: 'Ou você volta, ou será advertido por recusar-se a trabalhar'", diz um trabalhador temporário. Perfeitamente ciente dessa situação, o arcebispo de Douala, Christian Tumi, que nunca foi conivente com as autoridades, resume sobriamente: "Em Njombe Penja, os direitos fundamentais dos cidadãos não são respeitados".
Segundo a Ação Cristã para Abolição da Tortura (ACAT-Littoral), a exploração das terras cedidas ou alugadas pelos camponeses locais às sociedades bananeiras por uma soma que não é reajustada há décadas aumentou o descontentamento dos revoltosos. "Meu pai vendeu sua terra nos anos 70 sob a promessa de que seus filhos seriam assalariados a vida toda, e não deixados por conta própria. Ele se arrependeu, já que constatou que a pobreza não recuou", testemunha um dos cidadãos. Além do mais, há casos de intoxicações alimentares ligados à aspersão aérea de produtos fitossanitários. Ao denunciar os "maus-tratos sob os quais vivem a população de Njombe Penja há anos", a Acat denuncia "a conivência dos investidores franceses, pouco conscientes do bem-estar dos camaroneses".
Na entrada de cada fileira de bananeiras, destacam-se pequenos panfletos. Eles levam impressa a bandeira estrelada da União Européia. As companhias bananeiras, principalmente as que operam em Njombe Penja, de fato recebem subsídios a título de "apoio ao setor bananeiro" do país, que exporta 300 mil toneladas de banana por ano. Entre 2001 e 2005, 24 milhões de euros foram destinados "à política de desenvolvimento econômico e de luta contra a pobreza", diz a representação da União Européia em Yaoundé. Certificados Iso e Globalgap também foram concedidos às mesmas companhias. O primeiro atesta o "gerenciamento ambiental", e o segundo as "boas práticas agrícolas".
Um dirigente do setor assegura que paga "todos seus impostos". Mas admite que sua companhia recebe, além das subvenções da UE, uma isenção de taxas por parte das autoridades camaronesas por conta de realizar atividade em área "socialmente sensível". Esse imposto deveria revertido para as comunidades extremamente pobres. Mas o sistema fiscal camaronês, gangrenado pela corrupção, não tem nada de transparente.
"As companhias não pagam impostos nem taxas há trinta anos", afirma o prefeito M. Kingue, por sua vez. Em setembro de 2007, ele denunciou essa situação ao primeiro-ministro e obteve uma reavaliação fiscal. Pouco depois, os patrões visados "ameaçaram me matar ou me prender", escreveu ele de sua cela. Pressionado, um dos interessados alega que sua companhia faz doações diretamente à comunidade, ataca as "exigências de dinheiro" do prefeito e refuta suas acusações: "Puro folclore camaronês!"
"Controvérsia"
Le Monde - Nação - 3/9 - nº 2935
Nas pegadas do profeta dos excluídos
16/09/08
O JC percorreu os nove Estados nordestinos, além do Tocantins, para refazer o mapa da fome de Josué de Castro
Sem fazer alarde, silenciosa e sorrateira, como um bicho que se enfia pelo mato, a fome corrói os lares miseráveis do Sertão nordestino e do brejo dos canaviais. Faz estrago sem pressa. Matando aos poucos, surda e continuadamente, seu exército de famintos. Nas duas regiões, uma árida pela própria natureza e a outra erodida pelo homem, o mal-assombro se espalha, na sua versão mais perigosa. De forma oculta, camuflada num prato de feijão, num cuscuz de milho, que se come dia sim, dia não. O Jornal do Commercio se embrenhou nos mangues, na Zona da Mata pernambucana e pelo Semi-Árido dos nove Estados do Nordeste e foi até Tocantins, no Norte do País, para refazer os caminhos traçados pelo médico e geógrafo Josué de Castro no livro Geografia da Fome, publicação que acordou o Brasil para o flagelo dos que nada ou pouco têm para comer.
Na jornada de quase 10 mil quilômetros por estradas esburacadas e empoeiradas onde deságuam todas as veredas e sertões, a reportagem descobriu que o monstro da fome amansou, comparado ao tempo em que Josué de Castro o revelou para o mundo. Mas está longe de ser domado. A velha esquelética do chapéu grande, como os sertanejos de antigamente retratavam a figura da fome, persiste, alimentada por uma miséria que separa os que têm e podem quase tudo dos que não têm nada. Uma legião de excluídos que no Brasil somam quase 14 milhões. Quatorze milhões de bocas incertas da comida de amanhã.
Hoje, data em que Josué de Castro completaria 100 anos, é a audaciosa voz do cientista e, sobretudo, do homem, que conduz a viagem feita pelas próximas páginas deste caderno especial. Uma viagem pela região que, segundo o próprio Josué, solidificava a ultrajante condição humana do brasileiro. O Nordeste, esse “imenso cenário de cerca de 600 mil milhas quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais inconfundíveis de seu sofrimento cósmico.” O geógrafo, sociólogo, escritor e também político Josué morreu há 35 anos. Sua obra, no entanto, reverbera cada vez mais alto pelos cantos dos fins de mundo, nas palavras que ecoam em constrangidas panelas vazias.
Na jornada pelos caminhos da fome, a reportagem achou personagens da ciência e da literatura de Josué, conheceu aqueles que conseguiram subverter a ordem do sistema agrícola e cruzou a região das fomes classificadas pelo próprio Josué como endêmicas, as que, entra inverno e sai inverno, não passam. Porque a endemia dos famintos brasileiros está relacionada a acesso e não à disponibilidade de comida.
É no mesmo Brasil das safras recordes que se chora por comida. É no mesmo Brasil que louva o agronegócio das toneladas de grãos que se dói de fome. Hoje, o maior acesso à alimentação tem agora nome de batismo: Bolsa-Família. Se com ela o cenário é de penúria, sem ela seria de genocídio. O assistencialismo no País das abundâncias se enraíza por terras secas de outras alternativas. Homens e solo sedentos por uma reforma agrária longe de ser concretizada.
Como cúmplice de uma predadora economia global, o Brasil entra assim na roda das especulações financeiras que transformam comida em artigo da Bolsa de Valores. O que para Josué de Castro deveria ser entendido como um direito do ser humano, se torna dinheiro vivo nas mãos de transnacionais. É, portanto, nesse cenário de grandes volumes numéricos que a obra de Josué ganha força. Porque não é genérica, e sim individual. Josué está de tocaia, desafiando as predições do desenvolvimento.
Para Frei Betto, que já esteve à frente do cenário político como assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e foi um dos mentores do programa Fome-Zero, Josué ainda é “um profeta do futuro”. “Suas idéias e propostas são louvadas, porém pouco ou nada praticadas. É preciso divulgá-las por toda parte, em todos os meios de comunicação, para que o Brasil fique livre, definitivamente, de sua maior chaga: a fome de milhões de pessoas.”
Nas próximas páginas, a obra de Josué de Castro será divulgada não por suas palavras, mas pelas histórias daqueles que formaram a visão de mundo desse pensador. São relatos muitas vezes de dor extrema, tão aguda que muitas vezes anestesia e se cala. Em um Brasil que não pode mais se alimentar de suas vergonhas.
Controvérsia - Jornal do Commercio - Geografia - 16/9 - nº 3061
"Jornal do Commercio"
O JC percorreu os nove Estados nordestinos, além do Tocantins, para refazer o mapa da fome de Josué de Castro
Sem fazer alarde, silenciosa e sorrateira, como um bicho que se enfia pelo mato, a fome corrói os lares miseráveis do Sertão nordestino e do brejo dos canaviais. Faz estrago sem pressa. Matando aos poucos, surda e continuadamente, seu exército de famintos. Nas duas regiões, uma árida pela própria natureza e a outra erodida pelo homem, o mal-assombro se espalha, na sua versão mais perigosa. De forma oculta, camuflada num prato de feijão, num cuscuz de milho, que se come dia sim, dia não. O Jornal do Commercio se embrenhou nos mangues, na Zona da Mata pernambucana e pelo Semi-Árido dos nove Estados do Nordeste e foi até Tocantins, no Norte do País, para refazer os caminhos traçados pelo médico e geógrafo Josué de Castro no livro Geografia da Fome, publicação que acordou o Brasil para o flagelo dos que nada ou pouco têm para comer.
Na jornada de quase 10 mil quilômetros por estradas esburacadas e empoeiradas onde deságuam todas as veredas e sertões, a reportagem descobriu que o monstro da fome amansou, comparado ao tempo em que Josué de Castro o revelou para o mundo. Mas está longe de ser domado. A velha esquelética do chapéu grande, como os sertanejos de antigamente retratavam a figura da fome, persiste, alimentada por uma miséria que separa os que têm e podem quase tudo dos que não têm nada. Uma legião de excluídos que no Brasil somam quase 14 milhões. Quatorze milhões de bocas incertas da comida de amanhã.
Hoje, data em que Josué de Castro completaria 100 anos, é a audaciosa voz do cientista e, sobretudo, do homem, que conduz a viagem feita pelas próximas páginas deste caderno especial. Uma viagem pela região que, segundo o próprio Josué, solidificava a ultrajante condição humana do brasileiro. O Nordeste, esse “imenso cenário de cerca de 600 mil milhas quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais inconfundíveis de seu sofrimento cósmico.” O geógrafo, sociólogo, escritor e também político Josué morreu há 35 anos. Sua obra, no entanto, reverbera cada vez mais alto pelos cantos dos fins de mundo, nas palavras que ecoam em constrangidas panelas vazias.
Na jornada pelos caminhos da fome, a reportagem achou personagens da ciência e da literatura de Josué, conheceu aqueles que conseguiram subverter a ordem do sistema agrícola e cruzou a região das fomes classificadas pelo próprio Josué como endêmicas, as que, entra inverno e sai inverno, não passam. Porque a endemia dos famintos brasileiros está relacionada a acesso e não à disponibilidade de comida.
É no mesmo Brasil das safras recordes que se chora por comida. É no mesmo Brasil que louva o agronegócio das toneladas de grãos que se dói de fome. Hoje, o maior acesso à alimentação tem agora nome de batismo: Bolsa-Família. Se com ela o cenário é de penúria, sem ela seria de genocídio. O assistencialismo no País das abundâncias se enraíza por terras secas de outras alternativas. Homens e solo sedentos por uma reforma agrária longe de ser concretizada.
Como cúmplice de uma predadora economia global, o Brasil entra assim na roda das especulações financeiras que transformam comida em artigo da Bolsa de Valores. O que para Josué de Castro deveria ser entendido como um direito do ser humano, se torna dinheiro vivo nas mãos de transnacionais. É, portanto, nesse cenário de grandes volumes numéricos que a obra de Josué ganha força. Porque não é genérica, e sim individual. Josué está de tocaia, desafiando as predições do desenvolvimento.
Para Frei Betto, que já esteve à frente do cenário político como assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e foi um dos mentores do programa Fome-Zero, Josué ainda é “um profeta do futuro”. “Suas idéias e propostas são louvadas, porém pouco ou nada praticadas. É preciso divulgá-las por toda parte, em todos os meios de comunicação, para que o Brasil fique livre, definitivamente, de sua maior chaga: a fome de milhões de pessoas.”
Nas próximas páginas, a obra de Josué de Castro será divulgada não por suas palavras, mas pelas histórias daqueles que formaram a visão de mundo desse pensador. São relatos muitas vezes de dor extrema, tão aguda que muitas vezes anestesia e se cala. Em um Brasil que não pode mais se alimentar de suas vergonhas.
Controvérsia - Jornal do Commercio - Geografia - 16/9 - nº 3061
"Jornal do Commercio"
EUA impõem transgênicos a africanos
11/09 - Marilene Felinto
Não é de hoje que os Estados Unidos querem transformar o continente africano num quintal para disseminar suas sementes transgênicas e o excedente de sua produção de alimentos desse tipo.
A África está no centro da disputa entre Estados Unidos e União Européia (UE) pela liberação do comércio de alimentos geneticamente modificados no mundo. Os EUA entraram há poucos dias com uma ação contra a UE junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) pedindo a suspensão da proibição de novos produtos desse tipo no mercado europeu.
Segundo a agência de notícias All Africa, o secretário de Comércio estadunidense, Robert Zoellick, anunciou que 13 países africanos, incluindo África do Sul e Egito, apoiam a ação de seu país contra os europeus na OMC.
Entretanto, em Uganda – país instado a apoiar a ação dos estadunidenses mas que não aceitou de imediato –, autoridades de defesa do consumidor citadas pela All Africa declararam à imprensa africana que “esta guerra comercial entre os Estados Unidos e a Europa por alimentos geneticamente modificados não é uma guerra por Uganda ou pela África”, mas sim uma batalha entre “elefantes econômicos” pouco atentos aos interesses das nações menos desenvolvidas. Uganda recusou-se recentemente a plantar uma espécie de banana transgênica resistente a pragas oferecida pelos EUA, temendo que seus produtos passem a sofrer bloqueio no mercado europeu.
O debate sobre os transgênicos deve ocupar espaço na reunião dos oito países mais ricos do mundo, o G-8, que começou esta semana na França. Em 21 de maio último, o presidente George Bush acusou a Europa de dificultar o combate à fome na África ao adotar uma moratória no licenciamento de novos transgênicos em território europeu que já dura cinco anos. Para Bush, os europeus estão cientificamente atrasados ao revelar “medos infundados” pelos produtos que contêm organismos geneticamente modificados. Ele acusa a Europa de ser a responsável por levar várias nações africanas a evitar investir em biotecnologia por medo de que seus produtos sejam impedidos de entrar nos mercados europeus.
Não é de hoje que os Estados Unidos querem transformar o continente africano num quintal para disseminar suas sementes transgênicas e o excedente de sua produção de alimentos desse tipo. A maior parte da ajuda humanitária que a África recebe em forma de alimentos geneticamente modificados vem dos EUA, único país do hemisfério norte a impor ajuda “em espécie”, com uma política de comprar somente nos Estados Unidos os alimentos a serem doados, privilegiando a agricultura e as multinacionais estadunidenses.
Ambientalistas têm alertado para o fato de que a introdução de sementes modificadas na África tornará os agricultores africanos reféns da tecnologia dessas multinacionais, desde a produção de sementes até o plantio e a colheita. O especialista em políticas alimentares das Nações Unidas, Jean Zigler disse recentemente a um jornal inglês que ele é “contra a teoria das corporações multinacionais que dizem que se você está contra a fome, deve ser a favor dos OGMs”. Ziegler acha que “há muito alimento natural, normal e bom no mundo para alimentar o dobro da humanidade.”
Contaminação intencional
A política protecionista dos EUA também vai contra as recomendações de Organizações Não Governamentais (ONGs) internacionais de combate à fome como Oxfam e Action Aid e de defesa ambiental como Greenpeace, que se opõem à introdução de transgênicos na África. Comunidades científicas do mundo todo ainda não chegaram a uma conclusão quanto aos efeitos dos transgênicos sobre o meio ambiente e a saúde humana.
“O Greenpeace recomenda que os países que prestam ajuda humanitária à África façam suas doações em dinheiro, para que o alimento seja comprado dentro da própria África, incentivando a agricultura e a economia locais. Em geral, os países da União Européia fazem isso”, explica Tatiana de Carvalho, engenheira agrônoma e assessora da campanha de engenharia genética do Greenpeace Brasil.
Tatiana disse ainda ao Brasil de Fato que não se justifica os Estados Unidos insistirem em doar grãos transgênicos quando existe no mundo uma oferta suficiente de grãos não transgênicos. “Isso mostra que a estratégia deles é muito mais a contaminação intencional dos bancos de sementes dos países do sul da África do que ajuda humanitária. Se a intenção fosse de ajuda a uma situação emergencial de fome, eles buscariam outra solução.”
Ainda segundo ela, os Estados Unidos entraram com esta ação na OMC por medo do Protocolo de Cartagena, o protocolo internacional de bio-segurança, que está prestes a entrar em vigor, faltando apenas a assinatura de dois países para tanto. “Já são 48 países ratificando o protocolo. Faltam apenas mais dois para os 50 necessários para que ele entre em vigor, estabelecendo que qualquer país tem o direito de rejeitar grãos transgênicos. Então, quer dizer que essa entrada dos EUA na OMC contra a moratória também é um temor da vigência desse protocolo”, afirmou a engenheira.
"Controvérsia"
Geografia Geral e do Brasil - Imperialismo - 11/9 - nº 3011
Não é de hoje que os Estados Unidos querem transformar o continente africano num quintal para disseminar suas sementes transgênicas e o excedente de sua produção de alimentos desse tipo.
A África está no centro da disputa entre Estados Unidos e União Européia (UE) pela liberação do comércio de alimentos geneticamente modificados no mundo. Os EUA entraram há poucos dias com uma ação contra a UE junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) pedindo a suspensão da proibição de novos produtos desse tipo no mercado europeu.
Segundo a agência de notícias All Africa, o secretário de Comércio estadunidense, Robert Zoellick, anunciou que 13 países africanos, incluindo África do Sul e Egito, apoiam a ação de seu país contra os europeus na OMC.
Entretanto, em Uganda – país instado a apoiar a ação dos estadunidenses mas que não aceitou de imediato –, autoridades de defesa do consumidor citadas pela All Africa declararam à imprensa africana que “esta guerra comercial entre os Estados Unidos e a Europa por alimentos geneticamente modificados não é uma guerra por Uganda ou pela África”, mas sim uma batalha entre “elefantes econômicos” pouco atentos aos interesses das nações menos desenvolvidas. Uganda recusou-se recentemente a plantar uma espécie de banana transgênica resistente a pragas oferecida pelos EUA, temendo que seus produtos passem a sofrer bloqueio no mercado europeu.
O debate sobre os transgênicos deve ocupar espaço na reunião dos oito países mais ricos do mundo, o G-8, que começou esta semana na França. Em 21 de maio último, o presidente George Bush acusou a Europa de dificultar o combate à fome na África ao adotar uma moratória no licenciamento de novos transgênicos em território europeu que já dura cinco anos. Para Bush, os europeus estão cientificamente atrasados ao revelar “medos infundados” pelos produtos que contêm organismos geneticamente modificados. Ele acusa a Europa de ser a responsável por levar várias nações africanas a evitar investir em biotecnologia por medo de que seus produtos sejam impedidos de entrar nos mercados europeus.
Não é de hoje que os Estados Unidos querem transformar o continente africano num quintal para disseminar suas sementes transgênicas e o excedente de sua produção de alimentos desse tipo. A maior parte da ajuda humanitária que a África recebe em forma de alimentos geneticamente modificados vem dos EUA, único país do hemisfério norte a impor ajuda “em espécie”, com uma política de comprar somente nos Estados Unidos os alimentos a serem doados, privilegiando a agricultura e as multinacionais estadunidenses.
Ambientalistas têm alertado para o fato de que a introdução de sementes modificadas na África tornará os agricultores africanos reféns da tecnologia dessas multinacionais, desde a produção de sementes até o plantio e a colheita. O especialista em políticas alimentares das Nações Unidas, Jean Zigler disse recentemente a um jornal inglês que ele é “contra a teoria das corporações multinacionais que dizem que se você está contra a fome, deve ser a favor dos OGMs”. Ziegler acha que “há muito alimento natural, normal e bom no mundo para alimentar o dobro da humanidade.”
Contaminação intencional
A política protecionista dos EUA também vai contra as recomendações de Organizações Não Governamentais (ONGs) internacionais de combate à fome como Oxfam e Action Aid e de defesa ambiental como Greenpeace, que se opõem à introdução de transgênicos na África. Comunidades científicas do mundo todo ainda não chegaram a uma conclusão quanto aos efeitos dos transgênicos sobre o meio ambiente e a saúde humana.
“O Greenpeace recomenda que os países que prestam ajuda humanitária à África façam suas doações em dinheiro, para que o alimento seja comprado dentro da própria África, incentivando a agricultura e a economia locais. Em geral, os países da União Européia fazem isso”, explica Tatiana de Carvalho, engenheira agrônoma e assessora da campanha de engenharia genética do Greenpeace Brasil.
Tatiana disse ainda ao Brasil de Fato que não se justifica os Estados Unidos insistirem em doar grãos transgênicos quando existe no mundo uma oferta suficiente de grãos não transgênicos. “Isso mostra que a estratégia deles é muito mais a contaminação intencional dos bancos de sementes dos países do sul da África do que ajuda humanitária. Se a intenção fosse de ajuda a uma situação emergencial de fome, eles buscariam outra solução.”
Ainda segundo ela, os Estados Unidos entraram com esta ação na OMC por medo do Protocolo de Cartagena, o protocolo internacional de bio-segurança, que está prestes a entrar em vigor, faltando apenas a assinatura de dois países para tanto. “Já são 48 países ratificando o protocolo. Faltam apenas mais dois para os 50 necessários para que ele entre em vigor, estabelecendo que qualquer país tem o direito de rejeitar grãos transgênicos. Então, quer dizer que essa entrada dos EUA na OMC contra a moratória também é um temor da vigência desse protocolo”, afirmou a engenheira.
"Controvérsia"
Geografia Geral e do Brasil - Imperialismo - 11/9 - nº 3011
Países ricos buscam solos férteis para além de suas fronteiras
Javier Blas e Andrew England
A Arábia Saudita não tem rios ou lagos permanentes. As chuvas são escassas e não confiáveis. O cultivo de cereais só é possível por meio de projetos caros que esgotam os reservatórios subterrâneos. As vacas de leite precisam ser resfriadas com ventiladores e máquinas que as borrifam com um spray de água. Em suma, esta não é uma nação que normalmente seria associada à agricultura de grande escala.
Mas isto poderá mudar em breve. Estimulado pelas rendas resultantes da alta do petróleo e preocupado com a segurança alimentar, o reino árabe está vasculhando o globo em busca de terras férteis, em uma busca que levou autoridades sauditas ao Sudão, à Ucrânia, ao Paquistão e à Tailândia.
O plano saudita é implementar no exterior projetos de grande escala que mais tarde envolverão a participação do setor privado para o cultivo de grãos como o milho, o trigo e o arroz. Assim que um país for selecionado, cada projeto poderá ser instalado em uma área com mais de 100 mil hectares - o que equivale a dez vezes a superfície da ilha de Manhattan - e a maior parte das colheitas será exportada para a Arábia Saudita.
Embora os planos da Arábia Saudita estejam entre os mais grandiosos, eles refletem o interesse crescente em tais projetos por parte de países que têm capital sobrando e que importam a maior parte dos seus alimentos. Os Emirados Árabes Unidos estão olhando para o Cazaquistão e o Sudão, a Líbia quer arrendar fazendas na Ucrânia e a Coréia do Sul tem planos para investir na Mongólia. Até mesmo a China - que tem muita terra cultivável, mas que carece de água - está fazendo investimentos agrícolas no sudeste da Ásia.
"Esta é uma nova tendência associada à crise global dos alimentos", explica Joachim von Braun, diretor do Instituto Internacional de Pesquisas de Políticas de Alimentos, com sede em Washington. "Atualmente, a força dominante é a segurança das reservas de alimentos".
Alarmados pelas restrições comerciais impostas pelos países exportadores - como a contenção das exportações de arroz por parte da Índia, o cancelamento das remessas de trigo ucraniano e a imposição de pesadas taxas sobre as exportações da soja argentina -, os países importadores perceberam que a sua dependência do mercado internacional de alimentos torna-os vulneráveis não só a disparadas abruptas dos preços, mas também à interrupção das remessas que abastecem as suas reservas.
Como resultado disso, a segurança alimentar ocupa o topo da agenda política desses países pela primeira vez desde a década de 1970. "A crise de alimentos fez com que soasse o alarme para que todos os países busquem terras para assegurar os seus suprimentos de produtos agrícolas", diz Abudullah al-Obaid, vice-ministro da Agricultura da Arábia Saudita.
Von Braun, ecoando a opinião de dezenas de outras autoridades entrevistadas pelo "Financial Times", diz que a confiança no mercado internacional de alimentos está se desvanecendo. Pela primeira vez desde o início da década de 1990, quando o comércio de produtos agrícolas aumentou drasticamente, muitos países estão começando a achar que não é prudente depender das importações agrícolas. "Os importadores estão nervosos e perceberam que é mais recomendável que tenham uma participação em países com potencial para exportações agrícolas", diz von Braun.
Com o aumento do consumo global de alimentos, em grande parte devido à demanda por dietas ricas em carne nas economias emergentes, o desafio de alimentar populações em crescimento em países como a Arábia Saudita aumenta a cada ano. Os preços dos cereais caíram um pouco, após atingirem o seu ápice no início deste ano, mas eles ainda são o triplo da média registrada nos últimos dez anos.
A segurança alimentar é o principal fator para cada plano de investimento na agricultura no estrangeiro. Durante uma recente viagem pela Ásia Central, Khalifa bin Zayed, o presidente dos Emirados Árabes Unidos, observou que é necessário assegurar suprimentos. "Os Emirados Árabes Unidos estão cogitando implementar alguns projetos agrícolas no Cazaquistão como parte dos seus esforços para desenvolver fontes estáveis de alimentos para as suas necessidades", afirmou Zayed.
Para países ricos em terras cultiváveis e água, mas que possuem pouco capital, tais planos também poderão fazer bastante sentido. Os campos de trigo da Ucrânia, por exemplo, produzem menos de três toneladas por hectare, apesar de o país contar com um dos solos mais férteis do mundo e com chuvas abundantes. Isto está muito abaixo da produtividade dos Estados Unidos, que é de cerca de 6,5 toneladas por hectare, obtida em condições não tão favoráveis. Porém, mais tratores, uma quantidade bem maior de fertilizantes, técnicas melhores e sementes de alta produtividade poderão modificar esta situação.
Lennart Bage, presidente do Fundo Internacional para Desenvolvimento da Agricultura, das Nações Unidas, em Roma, afirma que durante muito tempo a terra foi considerada menos importante do que o petróleo ou os depósitos minerais. "Mas agora a terra fértil com acesso a água tornou-se uma vantagem estratégica", diz ele.
Alguns países compreenderam o potencial desse recurso. O Sudão, por exemplo, está tentando atrair pelo menos US$ 1 bilhão em capital para o seu setor agrícola junto a grupos de investimentos árabes e asiáticos. O Ministério do Investimento está divulgando a implementação de 17 projetos de grande escala que ocuparão uma área de 880 mil hectares.
Meles Zenawi, o primeiro-ministro da Etiópia, também está entusiasmado. Após ter recebido uma delegação agrícola saudita duas semanas atrás, ele afirmou: "Nós dissemos a eles (os sauditas) que estaríamos bastante dispostos a fornecer centenas de milhares de hectares de terras agrícolas para investimentos".
Mas tais acordos provavelmente custarão caro aos países produtores de alimentos. Por meio de acordos bilaterais secretos, os investidores esperam contornar qualquer potencial restrição comercial que o país anfitrião possa impor durante uma crise.
Para alguns elaboradores de políticas, isto faz lembrar um cenário assustador no qual as safras são transportadas a partir de fazendas fortificadas enquanto moradores locais famintos observam. E ninguém sabe se áreas agrícolas enormes poderiam ser defendidas a exemplo do que ocorre com instalações petrolíferas. Outros observam que a busca por terras ocorre em países nos quais a esfera legal é fraca, e onde a maioria dos agricultores não conta com direitos formais à terra e carece de acessos a mecanismos de compensação.
Os defensores do livre comércio na agricultura também se preocupam com aquilo que consideram tentativas de implementar a produção de alimentos, quando se deveria procurar expandir o fornecimento ao mercado internacional. Ed Schafer, secretário da Agricultura dos Estados Unidos, diz que ficará preocupado caso os investimentos forem simplesmente uma forma de "contornar o mercado internacional e os acordos comerciais globais".
As autoridades agrícolas européias acrescentam que os países mais pobres e que apresentam déficits de alimentos, como aqueles do oeste da África, amargarão os maiores sofrimentos. Incapazes de investir no exterior, esses países serão também os mais vulneráveis à alta dos alimentos em um mercado internacional reduzido.
Instituições multilaterais como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, que inicialmente encorajaram os investimentos estrangeiros na agricultura como forma de estimular a produção global, estão moderando o seu apoio anterior.
Esta mudança é evidente na postura de Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, que inicialmente descreveu os investimentos estrangeiros estatais como "uma iniciativa na qual todos saem ganhando". Agora um porta-voz do banco afirma: "Esta é uma situação que poderá trazer benefícios reais para os habitantes de alguns países em desenvolvimento, mas, para que isso seja sustentável, as compras e arrendamentos de terras precisam beneficiar, e provar que beneficiam, todas as partes envolvidas, incluindo os cidadãos do país anfitrião, as comunidades e os investidores locais".
Uma mudança semelhante pode ser observada em Jacques Diouf, diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação. Ele inicialmente defendeu "acordos de joint-ventures entre, de um lado, aqueles países que contam com os recursos financeiros e, do outro lado, aqueles que possuem terras, água e recursos humanos".
Mas agora ele está advertindo para os riscos de um sistema agrícola "neocolonial". "Algumas negociações entre os países anfitriões e os investidores gerarão relações internacionais desiguais e uma agricultura mercantilista de curto prazo", alerta Diouf.
Bage concorda que poderá haver problemas: "Estamos falando de alguns países anfitriões nos quais existe pobreza e fome generalizadas, e temos que garantir que as populações locais desfrutem integralmente dos benefícios dessas iniciativas".
Por exemplo, no Sudão - um país visado por quase todos os investidores do Golfo Pérsico - o Programa Mundial de Alimentos, a agência da ONU que lida com emergências alimentares, está sustentando 5,6 milhões de pessoas. Caso os planos de investimentos sigam em frente, o Sudão, perversamente, poderá exportar comida para países ricos enquanto a sua própria população passa fome.
As autoridades chinesas, que apóiam a política expansiva de Pequim para assegurar commodities como petróleo e metais na África, parecem estar conscientes dos perigos potenciais. Embora Pequim tenham firmado acordos nas Filipinas e em Laos, e tenha desenvolvido alguns projetos pequenos na África - em sua maioria "fazendas de demonstração" que ensinam técnicas agrícolas aos moradores locais -, a China parece ter pouco apetite por investimentos agrícolas de grande escala no exterior.
"Tem muita gente passando fome na África", explica Xie Guoli, agente comercial do Ministério da Agricultura da China. "Dá para exportar os grãos para a China? Os custos serão muito altos, e os riscos também".
Não obstante, algumas companhias privadas chinesas estão buscando investimentos na agricultura, embora as autoridades afirmem que estão se concentrando na Ásia Central e não na África. Pequim parece temer menos os potenciais conflitos em países como o Cazaquistão, nos quais os custos de transporte também são mais baixos.
As autoridades da área de agricultura e alimentos da ONU também temem o potencial para a corrupção, devido à fragilidade da governança em vários países africanos e da Ásia Central.
Elas sugerem que os investimentos deveriam ser regulados por uma estrutura similar, no que diz respeito ao objetivo, à da Iniciativa pela Transparência nas Indústrias de Extração, um arranjo que obriga os países ricos em recursos a divulgar os pagamentos feitos às companhias e as receitas governamentais derivadas do petróleo, do gás e da mineração.
A Iniciativa pela Transparência nas Indústrias de Extração ajudou a conter a corrupção nos setores petrolífero e de mineração. Mas uma estrutura similar para a agricultura poderia exigir meses de negociações, e os países que têm déficit de alimentos estão com pressa. Enquanto as autoridades ocidentais discutem os riscos e as salvaguardas, a Arábia Saudita e outros países parecem querer arrendar terras antes da chegada da próxima temporada de plantio.
"Financial Times"
A Arábia Saudita não tem rios ou lagos permanentes. As chuvas são escassas e não confiáveis. O cultivo de cereais só é possível por meio de projetos caros que esgotam os reservatórios subterrâneos. As vacas de leite precisam ser resfriadas com ventiladores e máquinas que as borrifam com um spray de água. Em suma, esta não é uma nação que normalmente seria associada à agricultura de grande escala.
Mas isto poderá mudar em breve. Estimulado pelas rendas resultantes da alta do petróleo e preocupado com a segurança alimentar, o reino árabe está vasculhando o globo em busca de terras férteis, em uma busca que levou autoridades sauditas ao Sudão, à Ucrânia, ao Paquistão e à Tailândia.
O plano saudita é implementar no exterior projetos de grande escala que mais tarde envolverão a participação do setor privado para o cultivo de grãos como o milho, o trigo e o arroz. Assim que um país for selecionado, cada projeto poderá ser instalado em uma área com mais de 100 mil hectares - o que equivale a dez vezes a superfície da ilha de Manhattan - e a maior parte das colheitas será exportada para a Arábia Saudita.
Embora os planos da Arábia Saudita estejam entre os mais grandiosos, eles refletem o interesse crescente em tais projetos por parte de países que têm capital sobrando e que importam a maior parte dos seus alimentos. Os Emirados Árabes Unidos estão olhando para o Cazaquistão e o Sudão, a Líbia quer arrendar fazendas na Ucrânia e a Coréia do Sul tem planos para investir na Mongólia. Até mesmo a China - que tem muita terra cultivável, mas que carece de água - está fazendo investimentos agrícolas no sudeste da Ásia.
"Esta é uma nova tendência associada à crise global dos alimentos", explica Joachim von Braun, diretor do Instituto Internacional de Pesquisas de Políticas de Alimentos, com sede em Washington. "Atualmente, a força dominante é a segurança das reservas de alimentos".
Alarmados pelas restrições comerciais impostas pelos países exportadores - como a contenção das exportações de arroz por parte da Índia, o cancelamento das remessas de trigo ucraniano e a imposição de pesadas taxas sobre as exportações da soja argentina -, os países importadores perceberam que a sua dependência do mercado internacional de alimentos torna-os vulneráveis não só a disparadas abruptas dos preços, mas também à interrupção das remessas que abastecem as suas reservas.
Como resultado disso, a segurança alimentar ocupa o topo da agenda política desses países pela primeira vez desde a década de 1970. "A crise de alimentos fez com que soasse o alarme para que todos os países busquem terras para assegurar os seus suprimentos de produtos agrícolas", diz Abudullah al-Obaid, vice-ministro da Agricultura da Arábia Saudita.
Von Braun, ecoando a opinião de dezenas de outras autoridades entrevistadas pelo "Financial Times", diz que a confiança no mercado internacional de alimentos está se desvanecendo. Pela primeira vez desde o início da década de 1990, quando o comércio de produtos agrícolas aumentou drasticamente, muitos países estão começando a achar que não é prudente depender das importações agrícolas. "Os importadores estão nervosos e perceberam que é mais recomendável que tenham uma participação em países com potencial para exportações agrícolas", diz von Braun.
Com o aumento do consumo global de alimentos, em grande parte devido à demanda por dietas ricas em carne nas economias emergentes, o desafio de alimentar populações em crescimento em países como a Arábia Saudita aumenta a cada ano. Os preços dos cereais caíram um pouco, após atingirem o seu ápice no início deste ano, mas eles ainda são o triplo da média registrada nos últimos dez anos.
A segurança alimentar é o principal fator para cada plano de investimento na agricultura no estrangeiro. Durante uma recente viagem pela Ásia Central, Khalifa bin Zayed, o presidente dos Emirados Árabes Unidos, observou que é necessário assegurar suprimentos. "Os Emirados Árabes Unidos estão cogitando implementar alguns projetos agrícolas no Cazaquistão como parte dos seus esforços para desenvolver fontes estáveis de alimentos para as suas necessidades", afirmou Zayed.
Para países ricos em terras cultiváveis e água, mas que possuem pouco capital, tais planos também poderão fazer bastante sentido. Os campos de trigo da Ucrânia, por exemplo, produzem menos de três toneladas por hectare, apesar de o país contar com um dos solos mais férteis do mundo e com chuvas abundantes. Isto está muito abaixo da produtividade dos Estados Unidos, que é de cerca de 6,5 toneladas por hectare, obtida em condições não tão favoráveis. Porém, mais tratores, uma quantidade bem maior de fertilizantes, técnicas melhores e sementes de alta produtividade poderão modificar esta situação.
Lennart Bage, presidente do Fundo Internacional para Desenvolvimento da Agricultura, das Nações Unidas, em Roma, afirma que durante muito tempo a terra foi considerada menos importante do que o petróleo ou os depósitos minerais. "Mas agora a terra fértil com acesso a água tornou-se uma vantagem estratégica", diz ele.
Alguns países compreenderam o potencial desse recurso. O Sudão, por exemplo, está tentando atrair pelo menos US$ 1 bilhão em capital para o seu setor agrícola junto a grupos de investimentos árabes e asiáticos. O Ministério do Investimento está divulgando a implementação de 17 projetos de grande escala que ocuparão uma área de 880 mil hectares.
Meles Zenawi, o primeiro-ministro da Etiópia, também está entusiasmado. Após ter recebido uma delegação agrícola saudita duas semanas atrás, ele afirmou: "Nós dissemos a eles (os sauditas) que estaríamos bastante dispostos a fornecer centenas de milhares de hectares de terras agrícolas para investimentos".
Mas tais acordos provavelmente custarão caro aos países produtores de alimentos. Por meio de acordos bilaterais secretos, os investidores esperam contornar qualquer potencial restrição comercial que o país anfitrião possa impor durante uma crise.
Para alguns elaboradores de políticas, isto faz lembrar um cenário assustador no qual as safras são transportadas a partir de fazendas fortificadas enquanto moradores locais famintos observam. E ninguém sabe se áreas agrícolas enormes poderiam ser defendidas a exemplo do que ocorre com instalações petrolíferas. Outros observam que a busca por terras ocorre em países nos quais a esfera legal é fraca, e onde a maioria dos agricultores não conta com direitos formais à terra e carece de acessos a mecanismos de compensação.
Os defensores do livre comércio na agricultura também se preocupam com aquilo que consideram tentativas de implementar a produção de alimentos, quando se deveria procurar expandir o fornecimento ao mercado internacional. Ed Schafer, secretário da Agricultura dos Estados Unidos, diz que ficará preocupado caso os investimentos forem simplesmente uma forma de "contornar o mercado internacional e os acordos comerciais globais".
As autoridades agrícolas européias acrescentam que os países mais pobres e que apresentam déficits de alimentos, como aqueles do oeste da África, amargarão os maiores sofrimentos. Incapazes de investir no exterior, esses países serão também os mais vulneráveis à alta dos alimentos em um mercado internacional reduzido.
Instituições multilaterais como o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, que inicialmente encorajaram os investimentos estrangeiros na agricultura como forma de estimular a produção global, estão moderando o seu apoio anterior.
Esta mudança é evidente na postura de Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, que inicialmente descreveu os investimentos estrangeiros estatais como "uma iniciativa na qual todos saem ganhando". Agora um porta-voz do banco afirma: "Esta é uma situação que poderá trazer benefícios reais para os habitantes de alguns países em desenvolvimento, mas, para que isso seja sustentável, as compras e arrendamentos de terras precisam beneficiar, e provar que beneficiam, todas as partes envolvidas, incluindo os cidadãos do país anfitrião, as comunidades e os investidores locais".
Uma mudança semelhante pode ser observada em Jacques Diouf, diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação. Ele inicialmente defendeu "acordos de joint-ventures entre, de um lado, aqueles países que contam com os recursos financeiros e, do outro lado, aqueles que possuem terras, água e recursos humanos".
Mas agora ele está advertindo para os riscos de um sistema agrícola "neocolonial". "Algumas negociações entre os países anfitriões e os investidores gerarão relações internacionais desiguais e uma agricultura mercantilista de curto prazo", alerta Diouf.
Bage concorda que poderá haver problemas: "Estamos falando de alguns países anfitriões nos quais existe pobreza e fome generalizadas, e temos que garantir que as populações locais desfrutem integralmente dos benefícios dessas iniciativas".
Por exemplo, no Sudão - um país visado por quase todos os investidores do Golfo Pérsico - o Programa Mundial de Alimentos, a agência da ONU que lida com emergências alimentares, está sustentando 5,6 milhões de pessoas. Caso os planos de investimentos sigam em frente, o Sudão, perversamente, poderá exportar comida para países ricos enquanto a sua própria população passa fome.
As autoridades chinesas, que apóiam a política expansiva de Pequim para assegurar commodities como petróleo e metais na África, parecem estar conscientes dos perigos potenciais. Embora Pequim tenham firmado acordos nas Filipinas e em Laos, e tenha desenvolvido alguns projetos pequenos na África - em sua maioria "fazendas de demonstração" que ensinam técnicas agrícolas aos moradores locais -, a China parece ter pouco apetite por investimentos agrícolas de grande escala no exterior.
"Tem muita gente passando fome na África", explica Xie Guoli, agente comercial do Ministério da Agricultura da China. "Dá para exportar os grãos para a China? Os custos serão muito altos, e os riscos também".
Não obstante, algumas companhias privadas chinesas estão buscando investimentos na agricultura, embora as autoridades afirmem que estão se concentrando na Ásia Central e não na África. Pequim parece temer menos os potenciais conflitos em países como o Cazaquistão, nos quais os custos de transporte também são mais baixos.
As autoridades da área de agricultura e alimentos da ONU também temem o potencial para a corrupção, devido à fragilidade da governança em vários países africanos e da Ásia Central.
Elas sugerem que os investimentos deveriam ser regulados por uma estrutura similar, no que diz respeito ao objetivo, à da Iniciativa pela Transparência nas Indústrias de Extração, um arranjo que obriga os países ricos em recursos a divulgar os pagamentos feitos às companhias e as receitas governamentais derivadas do petróleo, do gás e da mineração.
A Iniciativa pela Transparência nas Indústrias de Extração ajudou a conter a corrupção nos setores petrolífero e de mineração. Mas uma estrutura similar para a agricultura poderia exigir meses de negociações, e os países que têm déficit de alimentos estão com pressa. Enquanto as autoridades ocidentais discutem os riscos e as salvaguardas, a Arábia Saudita e outros países parecem querer arrendar terras antes da chegada da próxima temporada de plantio.
"Financial Times"
Fome Global
15/05/2008
Há milhões de pessoas em todo o mundo que se encontram impossibilitadas de adquirir alimentos para a sua sobrevivência
Michel Chossudovsky
Nesta era pós Guerra-Fria a humanidade encontra-se numa crise econômica e social, numa escala sem precedentes, que leva ao rápido empobrecimento de grandes setores da população mundial. Economias nacionais entram em colapso, o desemprego aumenta em flecha. Fomes a nível local irrompem na Africa subsaariana, no sul da Ásia e em regiões da América Latina. Esta "globalização da pobreza" – que inverteu consideravelmente os melhoramentos da descolonização pós-guerra – começou no Terceiro Mundo, coincidindo com a crise do endividamento no início dos anos 80 e a imposição das fatais reformas econômicas do FMI.
A Nova Ordem Mundial alimenta-se da pobreza humana e da destruição do ambiente natural. Gera o apartheid social, encoraja o racismo e o conflito étnico, corrói os direitos das mulheres e precipita frequentemente os países num confronto destrutivo entre as nacionalidades. Desde os anos 90 que alargou as suas garras a todas as principais regiões do mundo, incluindo a América do Norte, a Europa ocidental, os países do antigo bloco soviético e os "Países Recém-Industrializados") do sudeste asiático e do extremo oriente.
Esta crise mundial é mais devastadora do que a Grande Depressão dos anos 30. Tem consequências geopolíticas muito mais alargadas; a deslocalização econômica também tem sido acompanhada da explosão de guerras regionais, da fratura de sociedades nacionais e nalguns casos da destruição de países inteiros. Esta é de longe a crise econômica mais grave da história moderna. (Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty, First Edition, 1997)
Introdução
A fome é a consequência do processo de reestruturação do "mercado livre" da economia global que tem as suas raízes na crise de endividamento do início dos anos 80. Não é um fenômeno recente como é sugerido em vários artigos dos meios de comunicação ocidentais. Estes concentram-se apenas na oferta e procura a curto prazo dos produtos agrícolas, e ignoram as causas estruturais muito mais amplas da fome global.
A pobreza e a subnutrição crônica são condições preexistentes. As recentes subidas dos preços alimentares contribuíram para exacerbar e agravar a crise alimentar. A subida dos preços tem flagelado uma população empobrecida, que quase não tem meios para sobreviver.
Têm ocorrido motins por causa do pão quase simultaneamente em todas as principais regiões do mundo:
"Os preços dos alimentos no Haiti subiram em média 40 por cento em menos de um ano, em que o custo de produtos como o arroz duplicou… No Bangladesh, [nos finais de Abril de 2008], cerca de 20 mil trabalhadores têxteis saíram para a rua a protestar contra a terrível subida dos preços dos alimentos e a exigir salários mais altos. O preço do arroz neste país duplicou em relação ao ano passado, ameaçando com a fome os trabalhadores, que ganham um salário mensal de apenas 25 dólares… No Egipto, os protestos dos trabalhadores contra os preços dos alimentos abalaram o centro têxtil de Mahalla al-Kobra, a norte do Cairo, durante dois dias na semana passada, em que duas pessoas foram mortas a tiro pelas forças de segurança. Foram presas centenas de pessoas e o governo enviou polícias à paisana para as fábricas para obrigar os trabalhadores a retomar o trabalho. Os preços dos alimentos no Egipto subiram 40 por cento desde o ano passado… No princípio deste mês, na Costa do Marfim, centenas de pessoas manifestaram-se em frente da casa do presidente Laurent Gbagbo, cantando "temos fome" e "a vida está cara demais, vocês estão a matar-nos.
Manifestações, greves e confrontos semelhantes ocorreram na Bolívia, no Peru, no México, na Indonésia, nas Filipinas, no Paquistão, no Uzbequistão, na Tailândia, no Iémen, na Etiópia, e em quase toda a Africa subsaariana". (Bill Van Auken, Amid mounting food crisis, governments fear revolution of the hungry, Global Research, April 2008)
"A Eliminação dos Pobres"
Com a existência de grandes setores da população mundial já muito abaixo do limiar da pobreza, esta subida a curto-prazo dos preços dos produtos alimentares é devastadora. Há milhões de pessoas em todo o mundo que se encontram impossibilitadas de adquirir alimentos para a sua sobrevivência.
Estes aumentos brutais estão a contribuir verdadeiramente para a "eliminação dos pobres" através da "morte pela fome". Nas palavras de Henry Kissinger: "Quem controla o petróleo, controla as nações; quem controla os alimentos, controla as pessoas".
Quanto a isto, Kissinger já tinha dado a entender no contexto do Memorando 200 do Estudo de Segurança Nacional de 1974; "Implications of Worldwide Population Growth for U.S. Security and Overseas Interests" (Consequências do Crescimento Mundial da População para a Segurança dos EUA e seus Interesses Ultramarinos), que a ocorrência repetida de fomes podia constituir de facto um instrumento de controlo da população.
Segundo a FAO, o preço dos cereais aumentou 88 % desde Março de 2008. O preço do trigo aumentou 181 % num período de três anos. O preço do arroz aumentou 50% nos últimos três meses (ver Ian Angus, Food Crisis: " The greatest demonstration of the historical failure of the capitalist model", Global Research, April 2008):
"A qualidade mais popular do arroz da Tailândia vendia-se a 198 dólares por tonelada há cinco anos e a 323 dólares por tonelada o ano passado. Em Abril de 2008, o preço chegou aos 1 000 dólares. Os aumentos ainda são maiores nos mercados locais – no Haiti, o preço de mercado dum saco de arroz de 50 quilos duplicou numa só semana em finais de Março de 2008. Estes aumentos são catastróficos para os 2,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo que vivem com menos de 2 dólares por dia e gastam 60 a 80% dos seus rendimentos na alimentação. Há centenas de milhões que não têm posses para comer". (Ibid).
Duas dimensões interrelacionadas
Há duas dimensões interrelacionadas para a atual crise alimentar global, que estão a lançar milhões de pessoas em todo o mundo na fome e na privação crônica, uma situação em que grupos inteiros de populações deixaram de ter meios para adquirir alimentos.
Em primeiro lugar, é o processo histórico a longo prazo de reforma política macroeconômica e de reestruturação econômica global que tem contribuído para baixar os padrões de vida mundiais, tanto nos países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos.
Em segundo lugar, estas condições históricas preexistentes de pobreza de massas têm sido exacerbadas e agravadas pela recente subida nos preços dos cereais que, nalguns casos, chegaram à duplicação do preço de retalho dos produtos alimentares. Estas brutais subidas de preços resultam sobretudo do comércio especulativo nos produtos alimentares.
A explosão especulativa dos preços dos cereais
Os meios de comunicação têm enganado levianamente a opinião pública quanto às causas destas subidas brutais de preços, concentrando-se quase exclusivamente nas questões dos custos de produção, do clima e de outros factores que resultam numa oferta reduzida e que podem contribuir para aumentar o preço dos produtos alimentares. Se bem que esses factores possam contribuir para tal, têm uma relevância limitada para explicar os aumentos brutais e dramáticos nos preços destes produtos.
Os preços em espiral dos alimentos são sobretudo conseqüência da manipulação do mercado. São atribuíveis sobretudo ao comércio especulativo no mercado. Os preços dos cereais são inflacionados artificialmente por operações especulativas em grande escala nas bolsas mercantis de Nova Iorque e Chicago. Vale a pena assinalar que, em 2007, assistimos à fusão do Chicago Board of Trade (CBOT) com o Chicago Mercantile Exchange (CME), de que resultou a maior entidade mundial de comércio de produtos de consumo, incluindo uma ampla gama de instrumentos especulativos (opções, opções a prazo, fundos indexados, etc.)
O comércio especulativo sobre o trigo, o arroz ou o milho, pode fazer-se na ausência de transações reais de bens. As instituições que especulam no mercado dos cereais não têm que estar obrigatoriamente envolvidas na venda ou na entrega dos cereais.
As transações podem utilizar fundos indexados das mercadorias, ou seja, apostas sobre os movimentos gerais de subida ou descida dos preços das mercadorias. Uma "opção de venda" é uma aposta de que o preço vai descer, uma "opção de compra" é uma aposta de que o preço vai subir. Através duma manipulação concertada, os comerciantes institucionais e as instituições financeiras fazem o preço subir e depois fazem as suas apostas num movimento de subida do preço duma determinada mercadoria.
A especulação gera a volatilidade do mercado. Por seu turno, a instabilidade que daí resulta encoraja uma maior atividade especulativa.
Geram-se lucros quando os preços sobem. Em contrapartida, se o especulador está a descoberto no mercado, ganha dinheiro quando os preços entram em queda.
Esta recente explosão especulativa nos preços dos alimentos tem vindo a provocar um processo mundial de formação de fome a uma escala sem precedentes.
A falta de medidas reguladoras desencadeia a fome
Estas operações especulativas não provocam a fome deliberadamente.
O que provoca a fome é a ausência de procedimentos reguladores em relação ao comércio especulativo (opções, opções a prazo, fundos indexados). No atual contexto, o congelamento do comércio especulativo sobre produtos alimentares, decidido politicamente, contribuiria imediatamente para a baixa dos preços dos alimentos.,
Nada impede que estas transações sejam neutralizadas e impedidas através de um conjunto de medidas reguladoras cuidadosamente concebidas.
Mas, é visível que não é isso o que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional estão a propor.
O papel do FMI e do Banco Mundial
O Banco Mundial e o FMI apareceram com um plano de emergência, para incentivo à agricultura em resposta à "crise alimentar". No entanto, não querem saber das causas desta crise.
O presidente do Banco Mundial, Robert B. Zoellick, descreve esta iniciativa como um "novo contrato", um plano de ação "para o desenvolvimento a longo prazo da produção agrícola", que consiste, entre outras coisas, na duplicação dos empréstimos para a agricultura aos agricultores africanos.
"Temos que colocar o nosso dinheiro onde está hoje a nossa boca para que possamos levar comida às bocas famintas". (Robert Zoellick, diretor do Banco Mundial, citado pela BBC, 2.Maio.2008)
A "medicina econômica" do FMI/Banco Mundial não é uma "solução" mas é sobretudo a "causa" da fome nos países em desenvolvimento. Mais empréstimos do FMI-Banco Mundial para "incentivos à agricultura" só servirão para aumentar os níveis de endividamento e exacerbar a pobreza em vez de a diminuir.
Os "empréstimos baseados nesta política" do Banco Mundial são concedidos na condição de que os países obedeçam à agenda política neoliberal que, desde o início dos anos 80, tem vindo a conduzir ao colapso da agricultura alimentar a nível local.
A "estabilização macroeconômica" e os programas de ajustamento estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento (como condição para a renegociação da sua dívida externa) conduziram ao empobrecimento de centenas de milhões de pessoas.
As cruéis realidades econômicas e sociais subjacentes à intervenção do FMI são a subida dos preços dos alimentos, as fomes a nível local, os despedimentos maciços de trabalhadores urbanos e domésticos e a destruição de programas sociais. O poder de compra interno caiu, foram fechadas escolas e clínicas de cuidados de saúde contra a fome, há centenas de milhões de crianças a quem tem sido negado o direito à educação básica.
Tratamento de choque do FMI
Historicamente, os preços em espiral dos alimentos a nível retalhista foram sempre provocados pelas desvalorizações da moeda, que resultaram invariavelmente numa situação hiper inflacionária. No Peru em Agosto de 1990, por exemplo, por ordem do FMI, os preços dos combustíveis aumentaram 30 vezes de um dia para o outro. O preço do pão aumentou 12 vezes de um dia para o outro:
"Em todo o Terceiro Mundo, a situação é de desespero social e de desânimo social numa população empobrecida pelos jogos das leis do mercado. Em 1989, os motins anti-SAP [Programa de Ajustamento Estrutural] e os levantamentos populares são reprimidos brutalmente: em Caracas, o presidente Carlos Andres Perez, depois de ter denunciado retoricamente o FMI por praticar 'um totalitarismo econômico que mata não apenas com balas mas pela fome', declara o estado de emergência e envia unidades regulares de infantaria e de fuzileiros para as áreas pobres ( barrios de ranchos) nas colinas circundantes da capital. Os motins em Caracas anti-FMI foram ateados por um aumento de 200 por cento no preço do pão. Foram alvejados indiscriminadamente homens, mulheres e crianças: 'Noticiou-se que a morgue de Caracas tinha mais de 200 corpos de pessoas mortas nos três primeiros dias… e esta avisou que estava a ficar sem caixões'. Não oficialmente foram mortas mais de mil pessoas. Tunis, Janeiro de 1984, os motins pelo pão foram instigados sobretudo pela juventude desempregada protestando contra o aumento dos produtos alimentares; Nigéria, 1989: os motins estudantis anti-SAP levaram ao encerramento de seis universidades do país pelo Conselho Governamental das Forças Armadas; Marrocos, 1990: uma greve geral e um levantamento popular contra as reformas do governo, patrocinadas pelo FMI". (Michel Chossudovsky, op cit.)
A desregulamentação dos mercados de cereais
A partir dos anos 80, os mercados de cereais foram isentos de regulamentação sob a supervisão do Banco Mundial, e os excedentes de cereais dos Estados Unidos e da União Europeia (EUA/UE) são utilizados sistematicamente para destruir os agricultores e desestabilizar a agricultura alimentar nacional. Os empréstimos do Banco Mundial exigem o levantamento das barreiras comerciais sobre os produtos agrícolas importados, levando ao abaixamento de preços dos excedentes de cereais dos EUA/UE nos mercados locais. Estas e outras medidas atiraram os produtores agrícolas locais para a falência.
O "mercado livre" dos cereais – imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial – destrói a economia dos agricultores e põe em risco a "segurança alimentar". O Malawi e o Zimbabué já foram países prósperos com excedentes de cereais. O Ruanda era praticamente auto-suficiente quanto a alimentos até 1990, quando o FMI ordenou a introdução dos excedentes de cereais dos EUA e da UE a preços baixos no mercado interno, provocando a falência dos pequenos agricultores. Em 1991-92, a fome atingiu o Quénia, a economia do pão com maior êxito da Africa oriental. O governo de Nairobi fora colocado na lista negra por não obedecer às prescrições do FMI. A ausência de regulamentação do mercado dos cereais tinha sido exigida como uma das condições para a reforma da dívida externa de Nairobi com o Clube de Paris de credores autorizados. (Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty and the New World Order, Second Edition, Montreal 2003)
Por toda a Africa, assim como no sudeste asiático e na América Latina, o padrão do "ajustamento sectorial" na agricultura sob a custódia das instituições do Bretton Woods tem sido inequivocamente no sentido da destruição da segurança alimentar. Tem-se reforçado a dependência vis-à-vis o mercado mundial, o que conduz a uma explosão nas importações comerciais de cereais assim como à subida no influxo da "ajuda alimentar".
Os produtores agrícolas foram encorajados a abandonar as culturas alimentares e a virarem-se para culturas de exportação de "alto valor", quase sempre em detrimento da auto-suficiência alimentar. Os produtos de alto valor assim como as culturas para ganhar dinheiro com a exportação foram apoiados por empréstimos do Banco Mundial.
As fomes na era da globalização são o resultado desta política. A fome não é conseqüência da falta de alimentos, muito pelo contrário: os excedentes globais de alimentos são utilizados para desestabilizar a produção agrícola nos países em desenvolvimento.
Fortemente regulamentada e controlada pelas indústrias agrícolas internacionais, esta sobre-produção acaba por conduzir à estagnação tanto da produção como do consumo dos produtos alimentares essenciais e ao empobrecimento dos agricultores em todo o mundo. Além disso, na era da globalização, o programa de ajustamento estrutural do FMI-Banco Mundial tem uma relação direta com a formação do processo da fome porque corrói sistematicamente todas as áreas da atividade econômica, quer urbana quer rural, que não sirvam diretamente os interesses do sistema do mercado global.
Os rendimentos dos agricultores, tanto nos países ricos como nos países pobres, são espremidos por um punhado de empresas globais agro-industriais que controlam simultaneamente os mercados de cereais, os abastecimentos agrícolas, as sementes e os alimentos processados. É uma firma gigantesca, a Cargill Inc., com mais de 140 filiais e subsidiárias em todo o mundo, que controla grande parte do comércio internacional de cereais. A partir dos anos 50, a Cargill tornou-se o principal fornecedor da "ajuda alimentar" americana financiada pela Lei Pública 480 (1954).
A agricultura mundial tem, pela primeira vez na história, a capacidade de satisfazer as necessidades alimentares de todo o planeta; no entanto, a própria natureza do sistema de mercado global impede que isso aconteça. A capacidade de produzir alimentos é enorme, mas os níveis do consumo de alimentos mantêm-se extraordinariamente baixos porque uma enorme porção da população mundial vive em condições de pobreza e de privação extremas. Além disso, o processo de "modernização" da agricultura levou à espoliação dos agricultores, aumentou a falta de terras disponíveis e a degradação ambiental. Por outras palavras, as próprias forças que encorajam a expansão da produção global de alimentos estão também a provocar contraditoriamente uma contração nos padrões de vida e o declínio na procura de alimentos.
Sementes geneticamente modificadas
Coincidindo com a instituição da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, ocorreu outra importante mudança histórica na estrutura da agricultura global.
Ao abrigo dos artigos do acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC), os gigantes alimentares têm uma liberdade sem restrições para entrar nos mercados de sementes dos países em desenvolvimento. A aquisição de "direitos de propriedade intelectual" exclusivos sobre variedades de plantas pelos interesses agro-industriais internacionais, também favorece a destruição da biodiversidade.
Agindo em benefício de um punhado de conglomerados da biotecnologia, as sementes geneticamente modificadas (GMO) têm vindo a ser impostas aos agricultores, frequentemente no contexto de "programas de ajuda alimentar". Na Etiópia, por exemplo, na seqüência de uma grande seca, foram entregues conjuntos de sementes GMO a agricultores empobrecidos, com vista à reabilitação da produção agrícola. As sementes GMO foram plantadas, permitindo uma boa colheita. Mas depois os agricultores vieram a saber que as sementes não podiam voltar a ser plantadas, sem o pagamento de royalties à Monsanto, ao Arch Daniel Midland e a outros. A seguir, os agricultores descobriram que as sementes só dariam uma boa colheita se usassem os produtos adequados, incluindo o fertilizante, o insecticida e o herbicida, produzidos e distribuídos pelas companhias agro-industriais de biotecnologia. Economias rurais inteiras ficaram presas nas garras dos conglomerados agro-industriais.
A quebra do ciclo agrícola
Com o alastramento da adopção de sementes GMO, ocorreu uma importante mudança na estrutura e na história da agricultura tradicional desde a sua origem há 10 000 anos.
A reprodução de sementes a nível da aldeia em viveiros locais foi interrompida pelo uso de sementes geneticamente modificadas. O ciclo agrícola, que possibilita aos agricultores armazenar as suas sementes orgânicas e a plantá-las para conseguir as suas colheitas seguintes, foi interrompido. Este padrão destrutivo – que resulta invariavelmente na fome – é repetido país atrás de país levando à morte mundial da economia rural.
Michel Chossudovsky, canadense, é Professor de Economia na Universidade de Otava e Diretor do Centro para Investigação sobre a Globalização. É colaborador da Enciclopédia Britânica. Os seus escritos estão traduzidos em mais de 20 línguas.
"Brasil de Fato"
Há milhões de pessoas em todo o mundo que se encontram impossibilitadas de adquirir alimentos para a sua sobrevivência
Michel Chossudovsky
Nesta era pós Guerra-Fria a humanidade encontra-se numa crise econômica e social, numa escala sem precedentes, que leva ao rápido empobrecimento de grandes setores da população mundial. Economias nacionais entram em colapso, o desemprego aumenta em flecha. Fomes a nível local irrompem na Africa subsaariana, no sul da Ásia e em regiões da América Latina. Esta "globalização da pobreza" – que inverteu consideravelmente os melhoramentos da descolonização pós-guerra – começou no Terceiro Mundo, coincidindo com a crise do endividamento no início dos anos 80 e a imposição das fatais reformas econômicas do FMI.
A Nova Ordem Mundial alimenta-se da pobreza humana e da destruição do ambiente natural. Gera o apartheid social, encoraja o racismo e o conflito étnico, corrói os direitos das mulheres e precipita frequentemente os países num confronto destrutivo entre as nacionalidades. Desde os anos 90 que alargou as suas garras a todas as principais regiões do mundo, incluindo a América do Norte, a Europa ocidental, os países do antigo bloco soviético e os "Países Recém-Industrializados") do sudeste asiático e do extremo oriente.
Esta crise mundial é mais devastadora do que a Grande Depressão dos anos 30. Tem consequências geopolíticas muito mais alargadas; a deslocalização econômica também tem sido acompanhada da explosão de guerras regionais, da fratura de sociedades nacionais e nalguns casos da destruição de países inteiros. Esta é de longe a crise econômica mais grave da história moderna. (Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty, First Edition, 1997)
Introdução
A fome é a consequência do processo de reestruturação do "mercado livre" da economia global que tem as suas raízes na crise de endividamento do início dos anos 80. Não é um fenômeno recente como é sugerido em vários artigos dos meios de comunicação ocidentais. Estes concentram-se apenas na oferta e procura a curto prazo dos produtos agrícolas, e ignoram as causas estruturais muito mais amplas da fome global.
A pobreza e a subnutrição crônica são condições preexistentes. As recentes subidas dos preços alimentares contribuíram para exacerbar e agravar a crise alimentar. A subida dos preços tem flagelado uma população empobrecida, que quase não tem meios para sobreviver.
Têm ocorrido motins por causa do pão quase simultaneamente em todas as principais regiões do mundo:
"Os preços dos alimentos no Haiti subiram em média 40 por cento em menos de um ano, em que o custo de produtos como o arroz duplicou… No Bangladesh, [nos finais de Abril de 2008], cerca de 20 mil trabalhadores têxteis saíram para a rua a protestar contra a terrível subida dos preços dos alimentos e a exigir salários mais altos. O preço do arroz neste país duplicou em relação ao ano passado, ameaçando com a fome os trabalhadores, que ganham um salário mensal de apenas 25 dólares… No Egipto, os protestos dos trabalhadores contra os preços dos alimentos abalaram o centro têxtil de Mahalla al-Kobra, a norte do Cairo, durante dois dias na semana passada, em que duas pessoas foram mortas a tiro pelas forças de segurança. Foram presas centenas de pessoas e o governo enviou polícias à paisana para as fábricas para obrigar os trabalhadores a retomar o trabalho. Os preços dos alimentos no Egipto subiram 40 por cento desde o ano passado… No princípio deste mês, na Costa do Marfim, centenas de pessoas manifestaram-se em frente da casa do presidente Laurent Gbagbo, cantando "temos fome" e "a vida está cara demais, vocês estão a matar-nos.
Manifestações, greves e confrontos semelhantes ocorreram na Bolívia, no Peru, no México, na Indonésia, nas Filipinas, no Paquistão, no Uzbequistão, na Tailândia, no Iémen, na Etiópia, e em quase toda a Africa subsaariana". (Bill Van Auken, Amid mounting food crisis, governments fear revolution of the hungry, Global Research, April 2008)
"A Eliminação dos Pobres"
Com a existência de grandes setores da população mundial já muito abaixo do limiar da pobreza, esta subida a curto-prazo dos preços dos produtos alimentares é devastadora. Há milhões de pessoas em todo o mundo que se encontram impossibilitadas de adquirir alimentos para a sua sobrevivência.
Estes aumentos brutais estão a contribuir verdadeiramente para a "eliminação dos pobres" através da "morte pela fome". Nas palavras de Henry Kissinger: "Quem controla o petróleo, controla as nações; quem controla os alimentos, controla as pessoas".
Quanto a isto, Kissinger já tinha dado a entender no contexto do Memorando 200 do Estudo de Segurança Nacional de 1974; "Implications of Worldwide Population Growth for U.S. Security and Overseas Interests" (Consequências do Crescimento Mundial da População para a Segurança dos EUA e seus Interesses Ultramarinos), que a ocorrência repetida de fomes podia constituir de facto um instrumento de controlo da população.
Segundo a FAO, o preço dos cereais aumentou 88 % desde Março de 2008. O preço do trigo aumentou 181 % num período de três anos. O preço do arroz aumentou 50% nos últimos três meses (ver Ian Angus, Food Crisis: " The greatest demonstration of the historical failure of the capitalist model", Global Research, April 2008):
"A qualidade mais popular do arroz da Tailândia vendia-se a 198 dólares por tonelada há cinco anos e a 323 dólares por tonelada o ano passado. Em Abril de 2008, o preço chegou aos 1 000 dólares. Os aumentos ainda são maiores nos mercados locais – no Haiti, o preço de mercado dum saco de arroz de 50 quilos duplicou numa só semana em finais de Março de 2008. Estes aumentos são catastróficos para os 2,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo que vivem com menos de 2 dólares por dia e gastam 60 a 80% dos seus rendimentos na alimentação. Há centenas de milhões que não têm posses para comer". (Ibid).
Duas dimensões interrelacionadas
Há duas dimensões interrelacionadas para a atual crise alimentar global, que estão a lançar milhões de pessoas em todo o mundo na fome e na privação crônica, uma situação em que grupos inteiros de populações deixaram de ter meios para adquirir alimentos.
Em primeiro lugar, é o processo histórico a longo prazo de reforma política macroeconômica e de reestruturação econômica global que tem contribuído para baixar os padrões de vida mundiais, tanto nos países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos.
Em segundo lugar, estas condições históricas preexistentes de pobreza de massas têm sido exacerbadas e agravadas pela recente subida nos preços dos cereais que, nalguns casos, chegaram à duplicação do preço de retalho dos produtos alimentares. Estas brutais subidas de preços resultam sobretudo do comércio especulativo nos produtos alimentares.
A explosão especulativa dos preços dos cereais
Os meios de comunicação têm enganado levianamente a opinião pública quanto às causas destas subidas brutais de preços, concentrando-se quase exclusivamente nas questões dos custos de produção, do clima e de outros factores que resultam numa oferta reduzida e que podem contribuir para aumentar o preço dos produtos alimentares. Se bem que esses factores possam contribuir para tal, têm uma relevância limitada para explicar os aumentos brutais e dramáticos nos preços destes produtos.
Os preços em espiral dos alimentos são sobretudo conseqüência da manipulação do mercado. São atribuíveis sobretudo ao comércio especulativo no mercado. Os preços dos cereais são inflacionados artificialmente por operações especulativas em grande escala nas bolsas mercantis de Nova Iorque e Chicago. Vale a pena assinalar que, em 2007, assistimos à fusão do Chicago Board of Trade (CBOT) com o Chicago Mercantile Exchange (CME), de que resultou a maior entidade mundial de comércio de produtos de consumo, incluindo uma ampla gama de instrumentos especulativos (opções, opções a prazo, fundos indexados, etc.)
O comércio especulativo sobre o trigo, o arroz ou o milho, pode fazer-se na ausência de transações reais de bens. As instituições que especulam no mercado dos cereais não têm que estar obrigatoriamente envolvidas na venda ou na entrega dos cereais.
As transações podem utilizar fundos indexados das mercadorias, ou seja, apostas sobre os movimentos gerais de subida ou descida dos preços das mercadorias. Uma "opção de venda" é uma aposta de que o preço vai descer, uma "opção de compra" é uma aposta de que o preço vai subir. Através duma manipulação concertada, os comerciantes institucionais e as instituições financeiras fazem o preço subir e depois fazem as suas apostas num movimento de subida do preço duma determinada mercadoria.
A especulação gera a volatilidade do mercado. Por seu turno, a instabilidade que daí resulta encoraja uma maior atividade especulativa.
Geram-se lucros quando os preços sobem. Em contrapartida, se o especulador está a descoberto no mercado, ganha dinheiro quando os preços entram em queda.
Esta recente explosão especulativa nos preços dos alimentos tem vindo a provocar um processo mundial de formação de fome a uma escala sem precedentes.
A falta de medidas reguladoras desencadeia a fome
Estas operações especulativas não provocam a fome deliberadamente.
O que provoca a fome é a ausência de procedimentos reguladores em relação ao comércio especulativo (opções, opções a prazo, fundos indexados). No atual contexto, o congelamento do comércio especulativo sobre produtos alimentares, decidido politicamente, contribuiria imediatamente para a baixa dos preços dos alimentos.,
Nada impede que estas transações sejam neutralizadas e impedidas através de um conjunto de medidas reguladoras cuidadosamente concebidas.
Mas, é visível que não é isso o que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional estão a propor.
O papel do FMI e do Banco Mundial
O Banco Mundial e o FMI apareceram com um plano de emergência, para incentivo à agricultura em resposta à "crise alimentar". No entanto, não querem saber das causas desta crise.
O presidente do Banco Mundial, Robert B. Zoellick, descreve esta iniciativa como um "novo contrato", um plano de ação "para o desenvolvimento a longo prazo da produção agrícola", que consiste, entre outras coisas, na duplicação dos empréstimos para a agricultura aos agricultores africanos.
"Temos que colocar o nosso dinheiro onde está hoje a nossa boca para que possamos levar comida às bocas famintas". (Robert Zoellick, diretor do Banco Mundial, citado pela BBC, 2.Maio.2008)
A "medicina econômica" do FMI/Banco Mundial não é uma "solução" mas é sobretudo a "causa" da fome nos países em desenvolvimento. Mais empréstimos do FMI-Banco Mundial para "incentivos à agricultura" só servirão para aumentar os níveis de endividamento e exacerbar a pobreza em vez de a diminuir.
Os "empréstimos baseados nesta política" do Banco Mundial são concedidos na condição de que os países obedeçam à agenda política neoliberal que, desde o início dos anos 80, tem vindo a conduzir ao colapso da agricultura alimentar a nível local.
A "estabilização macroeconômica" e os programas de ajustamento estrutural impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento (como condição para a renegociação da sua dívida externa) conduziram ao empobrecimento de centenas de milhões de pessoas.
As cruéis realidades econômicas e sociais subjacentes à intervenção do FMI são a subida dos preços dos alimentos, as fomes a nível local, os despedimentos maciços de trabalhadores urbanos e domésticos e a destruição de programas sociais. O poder de compra interno caiu, foram fechadas escolas e clínicas de cuidados de saúde contra a fome, há centenas de milhões de crianças a quem tem sido negado o direito à educação básica.
Tratamento de choque do FMI
Historicamente, os preços em espiral dos alimentos a nível retalhista foram sempre provocados pelas desvalorizações da moeda, que resultaram invariavelmente numa situação hiper inflacionária. No Peru em Agosto de 1990, por exemplo, por ordem do FMI, os preços dos combustíveis aumentaram 30 vezes de um dia para o outro. O preço do pão aumentou 12 vezes de um dia para o outro:
"Em todo o Terceiro Mundo, a situação é de desespero social e de desânimo social numa população empobrecida pelos jogos das leis do mercado. Em 1989, os motins anti-SAP [Programa de Ajustamento Estrutural] e os levantamentos populares são reprimidos brutalmente: em Caracas, o presidente Carlos Andres Perez, depois de ter denunciado retoricamente o FMI por praticar 'um totalitarismo econômico que mata não apenas com balas mas pela fome', declara o estado de emergência e envia unidades regulares de infantaria e de fuzileiros para as áreas pobres ( barrios de ranchos) nas colinas circundantes da capital. Os motins em Caracas anti-FMI foram ateados por um aumento de 200 por cento no preço do pão. Foram alvejados indiscriminadamente homens, mulheres e crianças: 'Noticiou-se que a morgue de Caracas tinha mais de 200 corpos de pessoas mortas nos três primeiros dias… e esta avisou que estava a ficar sem caixões'. Não oficialmente foram mortas mais de mil pessoas. Tunis, Janeiro de 1984, os motins pelo pão foram instigados sobretudo pela juventude desempregada protestando contra o aumento dos produtos alimentares; Nigéria, 1989: os motins estudantis anti-SAP levaram ao encerramento de seis universidades do país pelo Conselho Governamental das Forças Armadas; Marrocos, 1990: uma greve geral e um levantamento popular contra as reformas do governo, patrocinadas pelo FMI". (Michel Chossudovsky, op cit.)
A desregulamentação dos mercados de cereais
A partir dos anos 80, os mercados de cereais foram isentos de regulamentação sob a supervisão do Banco Mundial, e os excedentes de cereais dos Estados Unidos e da União Europeia (EUA/UE) são utilizados sistematicamente para destruir os agricultores e desestabilizar a agricultura alimentar nacional. Os empréstimos do Banco Mundial exigem o levantamento das barreiras comerciais sobre os produtos agrícolas importados, levando ao abaixamento de preços dos excedentes de cereais dos EUA/UE nos mercados locais. Estas e outras medidas atiraram os produtores agrícolas locais para a falência.
O "mercado livre" dos cereais – imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial – destrói a economia dos agricultores e põe em risco a "segurança alimentar". O Malawi e o Zimbabué já foram países prósperos com excedentes de cereais. O Ruanda era praticamente auto-suficiente quanto a alimentos até 1990, quando o FMI ordenou a introdução dos excedentes de cereais dos EUA e da UE a preços baixos no mercado interno, provocando a falência dos pequenos agricultores. Em 1991-92, a fome atingiu o Quénia, a economia do pão com maior êxito da Africa oriental. O governo de Nairobi fora colocado na lista negra por não obedecer às prescrições do FMI. A ausência de regulamentação do mercado dos cereais tinha sido exigida como uma das condições para a reforma da dívida externa de Nairobi com o Clube de Paris de credores autorizados. (Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty and the New World Order, Second Edition, Montreal 2003)
Por toda a Africa, assim como no sudeste asiático e na América Latina, o padrão do "ajustamento sectorial" na agricultura sob a custódia das instituições do Bretton Woods tem sido inequivocamente no sentido da destruição da segurança alimentar. Tem-se reforçado a dependência vis-à-vis o mercado mundial, o que conduz a uma explosão nas importações comerciais de cereais assim como à subida no influxo da "ajuda alimentar".
Os produtores agrícolas foram encorajados a abandonar as culturas alimentares e a virarem-se para culturas de exportação de "alto valor", quase sempre em detrimento da auto-suficiência alimentar. Os produtos de alto valor assim como as culturas para ganhar dinheiro com a exportação foram apoiados por empréstimos do Banco Mundial.
As fomes na era da globalização são o resultado desta política. A fome não é conseqüência da falta de alimentos, muito pelo contrário: os excedentes globais de alimentos são utilizados para desestabilizar a produção agrícola nos países em desenvolvimento.
Fortemente regulamentada e controlada pelas indústrias agrícolas internacionais, esta sobre-produção acaba por conduzir à estagnação tanto da produção como do consumo dos produtos alimentares essenciais e ao empobrecimento dos agricultores em todo o mundo. Além disso, na era da globalização, o programa de ajustamento estrutural do FMI-Banco Mundial tem uma relação direta com a formação do processo da fome porque corrói sistematicamente todas as áreas da atividade econômica, quer urbana quer rural, que não sirvam diretamente os interesses do sistema do mercado global.
Os rendimentos dos agricultores, tanto nos países ricos como nos países pobres, são espremidos por um punhado de empresas globais agro-industriais que controlam simultaneamente os mercados de cereais, os abastecimentos agrícolas, as sementes e os alimentos processados. É uma firma gigantesca, a Cargill Inc., com mais de 140 filiais e subsidiárias em todo o mundo, que controla grande parte do comércio internacional de cereais. A partir dos anos 50, a Cargill tornou-se o principal fornecedor da "ajuda alimentar" americana financiada pela Lei Pública 480 (1954).
A agricultura mundial tem, pela primeira vez na história, a capacidade de satisfazer as necessidades alimentares de todo o planeta; no entanto, a própria natureza do sistema de mercado global impede que isso aconteça. A capacidade de produzir alimentos é enorme, mas os níveis do consumo de alimentos mantêm-se extraordinariamente baixos porque uma enorme porção da população mundial vive em condições de pobreza e de privação extremas. Além disso, o processo de "modernização" da agricultura levou à espoliação dos agricultores, aumentou a falta de terras disponíveis e a degradação ambiental. Por outras palavras, as próprias forças que encorajam a expansão da produção global de alimentos estão também a provocar contraditoriamente uma contração nos padrões de vida e o declínio na procura de alimentos.
Sementes geneticamente modificadas
Coincidindo com a instituição da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, ocorreu outra importante mudança histórica na estrutura da agricultura global.
Ao abrigo dos artigos do acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC), os gigantes alimentares têm uma liberdade sem restrições para entrar nos mercados de sementes dos países em desenvolvimento. A aquisição de "direitos de propriedade intelectual" exclusivos sobre variedades de plantas pelos interesses agro-industriais internacionais, também favorece a destruição da biodiversidade.
Agindo em benefício de um punhado de conglomerados da biotecnologia, as sementes geneticamente modificadas (GMO) têm vindo a ser impostas aos agricultores, frequentemente no contexto de "programas de ajuda alimentar". Na Etiópia, por exemplo, na seqüência de uma grande seca, foram entregues conjuntos de sementes GMO a agricultores empobrecidos, com vista à reabilitação da produção agrícola. As sementes GMO foram plantadas, permitindo uma boa colheita. Mas depois os agricultores vieram a saber que as sementes não podiam voltar a ser plantadas, sem o pagamento de royalties à Monsanto, ao Arch Daniel Midland e a outros. A seguir, os agricultores descobriram que as sementes só dariam uma boa colheita se usassem os produtos adequados, incluindo o fertilizante, o insecticida e o herbicida, produzidos e distribuídos pelas companhias agro-industriais de biotecnologia. Economias rurais inteiras ficaram presas nas garras dos conglomerados agro-industriais.
A quebra do ciclo agrícola
Com o alastramento da adopção de sementes GMO, ocorreu uma importante mudança na estrutura e na história da agricultura tradicional desde a sua origem há 10 000 anos.
A reprodução de sementes a nível da aldeia em viveiros locais foi interrompida pelo uso de sementes geneticamente modificadas. O ciclo agrícola, que possibilita aos agricultores armazenar as suas sementes orgânicas e a plantá-las para conseguir as suas colheitas seguintes, foi interrompido. Este padrão destrutivo – que resulta invariavelmente na fome – é repetido país atrás de país levando à morte mundial da economia rural.
Michel Chossudovsky, canadense, é Professor de Economia na Universidade de Otava e Diretor do Centro para Investigação sobre a Globalização. É colaborador da Enciclopédia Britânica. Os seus escritos estão traduzidos em mais de 20 línguas.
"Brasil de Fato"
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