17/12/2008 - 16h12
Especialista diz que comércio agrícola acelera mudança climática
da Efe, em Genebra
O comércio internacional de produtos agrícolas acelera a mudança climática, pois favorece o aumento das emissões de gases do efeito estufa, afirmou hoje o especialista da ONU sobre o Direito à Alimentação, Olivier de Schutter.
O fator fundamental, segundo De Schutter, deve-se às emissões geradas pelo transporte destes produtos e o tipo de agricultura intensiva que se promove. A agricultura já é responsável por 30% das emissões de gases responsáveis pelo aquecimento do planeta.
Além disso, afirmou que "o comércio é legítimo e se necessita em certo grau, mas não é a solução para a segurança alimentar".
O especialista apresentou à imprensa as conclusões de um estudo pedido pela ONU sobre a relação entre o comércio internacional e o direito à alimentação. O estudo apontou que o comércio não pode substituir a capacidade de cada país de alimentar sua população.
A pesquisa confirma que a crise de alimentos registrada este ano, originada por um grande aumento do preço dos alimentos básicos, aumentou em 100 milhões o número de pessoas que passam fome no mundo. São 963 milhões de pessoas --em comparação com 852 milhões de 2005-- e, desse número, 50% são pequenos agricultores de países em desenvolvimento.
O especialista das Nações Unidas critica em seu relatório o rumo que tomaram nos últimos anos as negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre uma maior liberalização do comércio mundial --incluído o agrícola-- e afirma que, embora estas conversas tenham tido êxito, isto não impediria que "outra crise de alimentos se repita daqui a dois ou três anos".
Os grandes produtores aumentaram seu poder e capacidade de influir nas políticas públicas, enquanto ninguém representa os interesses dos pequenos agricultores. Nessas circunstâncias, segundo De Schutter, os que "menos se preocupam por questões sociais ou ambientais têm vantagem".
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Carta de Maputo - Via Campesina
CARTA DE MAPUTO - 5ª Conferência Internacional da Via Campesina
Maputo, Moçambique, 19-22 de Outubro, 2008
O mundo inteiro está em crise
Uma crise multi-dimensional. De alimentos, de energia, de clima e de finanças. As soluções que o poder propõe – mais livre comércio, sementes transgênicas, etc – ignoram que a crise resulta do sistema capitalista e do neoliberalismo. Essas medidas somente aprofundarão seus impactos. Para encontrar soluções reais, temos que olhar para a Soberania Alimentar que propõe a Via Campesina.
Como chegamos na crise?
Nas últimas décadas, vimos o avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais, sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos, transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo já está em mãos de um número reduzido de empresas.
Os alimentos deixaram de ser um direito de todos e todas, e tornaram-se apenas mercadorias. Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo, com alimentos de má qualidade, preços que as pessoas não podem pagar. As tradições culinárias de nossos povos estão se perdendo.
Também vemos uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais, como nunca se viu desde os tempos coloniais. A crise da margem de lucro do capital os lança numa guerra de privatização que os leva nos expulsar, camponeses, camponesas, comunidades indígenas, roubando nossa terra, territórios, florestas, biodiversidade, água e minérios. Um roubo privatizador.
Os povos rurais e o meio ambiente estão sendo agredidos. A produção de agrocombustíveis em grandes monocultivos industriais também é razão dessa expulsão, falsamente justificada com argumentos sobre crise energética e climática. A realidade atrás das últimas facetas da crise tem muito mais ver com a atual matriz de transporte de longa distância dos bens - e individualizado em automóveis - do que com qualquer outra razão.
Com a crise dos alimentos e com a crise financeira, a situação torna-se mais grave. A crise financeira e a crise dos alimentos estão vinculadas à especulação do capital financeiro com os alimentos e a terra, em detrimento das pessoas. Agora, o capital financeiro está desesperado, assaltando os cofres públicos para dominuir seus prejuízos. Os países serão obrigados a fazer ainda mais cortes orçamentários, condenado-os a maior pobreza e maior sofrimento.
A fome no mundo segue a passos largos. A exploração e todas as violências, em especial a violência contra a mulher, espalham-se pelo mundo. Com a recessão econômica nos países ricos, aumenta a xenofobia contra os trabalhadores e trabalhadoras migrantes, com o racismo tomando grandes proporções e com o aumento da repressão. Os jovens têm cada vez menos oportunidades no campo. Isso é o que o modelo dominante oferece.
Ou seja, tudo vai de mal a pior. Contudo, no seio da crise, as oportunidades se fazem presentes. Oportunidades para o capitalismo, que usa a crise para se reinventar e encontrar novas formas de manter suas taxas de lucro, mas também oportunidades para os movimentos sociais, que defendemos a tese de que o neoliberalismo perde legitimidade entre os povos.
As instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, FMI, OMC) estão mostrando sua incapacidade de administrar a crise (além de serem parte dos motivos da crise), criando a possibilidade que sejam desarticuladas e que outras instituições reguladoras a economia global surjam e que atendam outros interesses. Está claro que as empresas transnacionais são os verdadeiros inimigos e estão atrás das crises.
Está claro que os governos neoliberais não atendem aos interesses dos povos. Também está claro que a produção mundial de alimentos controlada pelas empresas transnacionais, não se faz capaz de alimentar o grande contingente de pessoas neste planeta, enquanto que a Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa local, faz-se mais necessária do que nunca.
O que defendemos na Via Campesina frente a esta realidade?
- A soberania alimentar: Renacionalizar e tirar o capital especulativo da produção dos alimentos é a única saída para a crise dos alimentos. Somente a agricultura camponesa alimenta os povos, enquanto o agronegócio produz para a exportação e sua produção de agrocombustíveis é para alimentar os automóveis, e não para alimentar gente. A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é a solução para a crise.
- Frente às crises energéticas e climáticas: a disseminação de um sistema alimentar local, que não se baseia na agricultura industrial nem no transporte a longa distância, eliminaria até 40% das emissões de gases de efeito estufa. A agricultura industrial aquece o planeta, enquanto a agricultura camponesa desaquece. Uma mudança no padrão do transporte humano para um transporte coletivo e outras mudanças no padrão de consumo, são os passos a mais, necessários para enfrentarmos a crise energética e climática.
-A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena são essenciais para reverter o processo de expulsão do campo, e para disponibilizar a terra para a produção de alimentos, e não para produzir para a exportação e para combustíveis.
-A agricultura camponesa sustentável: somente a produção camponesa agroecológica pode desvincular o preço dos alimentos do preço do petróleo, recuperar os solos degradados pela agricultura industrial e produzir alimentos saudáveis e próximos para nossas comunidades.
-O avanço das mulheres é o avanço de todos: o fim de todos os tipos de violência para com as mulheres, seja ela, física, social ou outras. A conquista da verdadeira paridade de gênero em todos os espaços internos e instâncias de debates e tomada de decisões são compromissos imprescindíveis para avançar neste momento como movimentos de transformação da sociedade.
- O direito à semente e à água: a semente e a água são as verdadeiras fontes da vida, e são patrimônios dos povos. Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de sementes transgênicas ou de tecnologia terminator.
- Não à criminalização dos movimentos sociais. Sim à declaração dos Direitos dos Camponeses e Camponesas na ONU, proposta pela Via Campesina. Será um instrumento estratégico no sistema legal internacional para fortalecer nossa posição e nossos direitos como camponeses e camponesas.
- A juventude do campo: É necessário abrir, cada vez mais, espaços em nossos movimentos para incorporara força e a criatividade da juventude camponesa, com sua luta para contruir seu futuro no campo.
- Finalmente, nós produzimos e defendemos os alimentos para todos e todas.
Todos e todas participantes da V Conferência da Via Campesina nos comprometemos coma defesa da agricultura camponesa, com a Soberania Alimentar, com a dignidade, com a vida. Nós colocamos à disposição do mundo as soluções reais para a crise global que estamos enfrentando hoje. Temos o direito de continuarmos camponeses e camponesas, e temos a responsabilidade de alimentar nossos povos.
Aqui estamos, nós os camponeses e camponesas do mundo, e nos negamos a desaparecer.
Soberania Alimentar JÁ! Com a luta e a unidade dos povos!
Globalizemos a luta! Globalizemos a esperança!
VIA CAMPESINA INTERNACIONAL
(EXTRAÍDO DO BOLETIM ELETRONICO MÓ DE VIDA (http://www.modevida.com/agenda1.html#2)
Maputo, Moçambique, 19-22 de Outubro, 2008
O mundo inteiro está em crise
Uma crise multi-dimensional. De alimentos, de energia, de clima e de finanças. As soluções que o poder propõe – mais livre comércio, sementes transgênicas, etc – ignoram que a crise resulta do sistema capitalista e do neoliberalismo. Essas medidas somente aprofundarão seus impactos. Para encontrar soluções reais, temos que olhar para a Soberania Alimentar que propõe a Via Campesina.
Como chegamos na crise?
Nas últimas décadas, vimos o avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais, sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos, transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo já está em mãos de um número reduzido de empresas.
Os alimentos deixaram de ser um direito de todos e todas, e tornaram-se apenas mercadorias. Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo, com alimentos de má qualidade, preços que as pessoas não podem pagar. As tradições culinárias de nossos povos estão se perdendo.
Também vemos uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais, como nunca se viu desde os tempos coloniais. A crise da margem de lucro do capital os lança numa guerra de privatização que os leva nos expulsar, camponeses, camponesas, comunidades indígenas, roubando nossa terra, territórios, florestas, biodiversidade, água e minérios. Um roubo privatizador.
Os povos rurais e o meio ambiente estão sendo agredidos. A produção de agrocombustíveis em grandes monocultivos industriais também é razão dessa expulsão, falsamente justificada com argumentos sobre crise energética e climática. A realidade atrás das últimas facetas da crise tem muito mais ver com a atual matriz de transporte de longa distância dos bens - e individualizado em automóveis - do que com qualquer outra razão.
Com a crise dos alimentos e com a crise financeira, a situação torna-se mais grave. A crise financeira e a crise dos alimentos estão vinculadas à especulação do capital financeiro com os alimentos e a terra, em detrimento das pessoas. Agora, o capital financeiro está desesperado, assaltando os cofres públicos para dominuir seus prejuízos. Os países serão obrigados a fazer ainda mais cortes orçamentários, condenado-os a maior pobreza e maior sofrimento.
A fome no mundo segue a passos largos. A exploração e todas as violências, em especial a violência contra a mulher, espalham-se pelo mundo. Com a recessão econômica nos países ricos, aumenta a xenofobia contra os trabalhadores e trabalhadoras migrantes, com o racismo tomando grandes proporções e com o aumento da repressão. Os jovens têm cada vez menos oportunidades no campo. Isso é o que o modelo dominante oferece.
Ou seja, tudo vai de mal a pior. Contudo, no seio da crise, as oportunidades se fazem presentes. Oportunidades para o capitalismo, que usa a crise para se reinventar e encontrar novas formas de manter suas taxas de lucro, mas também oportunidades para os movimentos sociais, que defendemos a tese de que o neoliberalismo perde legitimidade entre os povos.
As instituições financeiras internacionais (Banco Mundial, FMI, OMC) estão mostrando sua incapacidade de administrar a crise (além de serem parte dos motivos da crise), criando a possibilidade que sejam desarticuladas e que outras instituições reguladoras a economia global surjam e que atendam outros interesses. Está claro que as empresas transnacionais são os verdadeiros inimigos e estão atrás das crises.
Está claro que os governos neoliberais não atendem aos interesses dos povos. Também está claro que a produção mundial de alimentos controlada pelas empresas transnacionais, não se faz capaz de alimentar o grande contingente de pessoas neste planeta, enquanto que a Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa local, faz-se mais necessária do que nunca.
O que defendemos na Via Campesina frente a esta realidade?
- A soberania alimentar: Renacionalizar e tirar o capital especulativo da produção dos alimentos é a única saída para a crise dos alimentos. Somente a agricultura camponesa alimenta os povos, enquanto o agronegócio produz para a exportação e sua produção de agrocombustíveis é para alimentar os automóveis, e não para alimentar gente. A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é a solução para a crise.
- Frente às crises energéticas e climáticas: a disseminação de um sistema alimentar local, que não se baseia na agricultura industrial nem no transporte a longa distância, eliminaria até 40% das emissões de gases de efeito estufa. A agricultura industrial aquece o planeta, enquanto a agricultura camponesa desaquece. Uma mudança no padrão do transporte humano para um transporte coletivo e outras mudanças no padrão de consumo, são os passos a mais, necessários para enfrentarmos a crise energética e climática.
-A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena são essenciais para reverter o processo de expulsão do campo, e para disponibilizar a terra para a produção de alimentos, e não para produzir para a exportação e para combustíveis.
-A agricultura camponesa sustentável: somente a produção camponesa agroecológica pode desvincular o preço dos alimentos do preço do petróleo, recuperar os solos degradados pela agricultura industrial e produzir alimentos saudáveis e próximos para nossas comunidades.
-O avanço das mulheres é o avanço de todos: o fim de todos os tipos de violência para com as mulheres, seja ela, física, social ou outras. A conquista da verdadeira paridade de gênero em todos os espaços internos e instâncias de debates e tomada de decisões são compromissos imprescindíveis para avançar neste momento como movimentos de transformação da sociedade.
- O direito à semente e à água: a semente e a água são as verdadeiras fontes da vida, e são patrimônios dos povos. Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de sementes transgênicas ou de tecnologia terminator.
- Não à criminalização dos movimentos sociais. Sim à declaração dos Direitos dos Camponeses e Camponesas na ONU, proposta pela Via Campesina. Será um instrumento estratégico no sistema legal internacional para fortalecer nossa posição e nossos direitos como camponeses e camponesas.
- A juventude do campo: É necessário abrir, cada vez mais, espaços em nossos movimentos para incorporara força e a criatividade da juventude camponesa, com sua luta para contruir seu futuro no campo.
- Finalmente, nós produzimos e defendemos os alimentos para todos e todas.
Todos e todas participantes da V Conferência da Via Campesina nos comprometemos coma defesa da agricultura camponesa, com a Soberania Alimentar, com a dignidade, com a vida. Nós colocamos à disposição do mundo as soluções reais para a crise global que estamos enfrentando hoje. Temos o direito de continuarmos camponeses e camponesas, e temos a responsabilidade de alimentar nossos povos.
Aqui estamos, nós os camponeses e camponesas do mundo, e nos negamos a desaparecer.
Soberania Alimentar JÁ! Com a luta e a unidade dos povos!
Globalizemos a luta! Globalizemos a esperança!
VIA CAMPESINA INTERNACIONAL
(EXTRAÍDO DO BOLETIM ELETRONICO MÓ DE VIDA (http://www.modevida.com/agenda1.html#2)
Número de famintos sobe para 963 milhões
Número de famintos sobe para 963 milhões
[FAO - 09/12/2008]
Número de famintos sobe para 963 milhões
Causa foi a alta dos preços dos alimentos – e crise financeira pode agravar a situação
Roma e Brasília, 9 de dezembro de 2008 – Mais 40 milhões de pessoas foram atingidas pela fome este ano, principalmente devido à alta dos preços dos alimentos, segundo as estatísticas preliminares publicadas hoje pela FAO. Com isso o número total de famintos no mundo subiu para 963 milhões, comparado a 923 milhões em 2007. E a crise financeira e econômica pode levar ainda mais pessoas para a fome e a pobreza, alerta a FAO.
“Os preços dos alimentos têm baixado em todo o mundo desde o início de 2008, mas isso não acabou com a crise alimentar em muitos países pobres”, informou o Diretor-Geral Adjunto da FAO, Hafez Ghanem, durante o lançamento da nova edição do relatório da FAO sobre a fome, “O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo – (SOFI) 2008”.
“Para milhões de pessoas nos países em desenvolvimento, ter o alimento mínimo todos os dias para uma vida ativa e saudável é um sonho distante. As causas estruturais da fome, como a falta de acesso a terra, crédito e emprego, combinadas com os altos preços dos alimentos continuam sendo uma triste realidade”, completou.
Os preços dos cereais principais caíram mais de 50% de seus picos no início de 2008, mas permanecem altos comparados a anos anteriores. Apesar da forte queda nos últimos meses, o Índice de Preços FAO permanecia 28% mais alto em outubro de 2008, comparado a outubro de 2006.
Como os preços das sementes e fertilizantes (e outros insumos) mais que dobraram desde 2006, os agricultures mais pobres não puderam aumentar a produção. Mas os de mais recursos, particularmente dos países desenvolvidos, conseguiram suportar os aumentos e expandir o plantio. Como resultado, a produção de cereais nos países desenvolvidos deve subir pelo menos 10% em 2008. E nos países em desenvolvimento o aumento não deve passar de 1%.
“Se a queda de preços e a restrição ao crédito associadas à crise econômica forçarem os agricultores a produzir menos alimentos, no ano que vem poderemos assistir a outra brusca alta de preços”, acrescentou Ghanem. “O objetivo da Cúpula Mundial de Alimentos de 1996, de reduzir à metade o número de famintos em 2015, requer um forte compromisso político e investimentos em países pobres de pelo menos US$30 bilhões por ano para agricultura e proteção social aos pobres”, concluiu.
O mapa da fome
A grande maioria da população subnutrida – 907 milhões – vive nos países em desenvolvimento, de acordo com os números de 2007 do “Estado da Insegurança Alimentar Mundial”. Desses, 65% estão concentrados em apenas sete países: Índia, China, República Democrática do Congo, Bangladesh, Indonésia, Paquistão e Etiópia. Progressos nos países de maior população teriam um importante impacto na redução global da fome.
Quase dois terços da população faminta do mundo vive na Ásia (583 milhões em 2007), continente com progresso relativamente lento na redução da fome. As notícias positivas são de que alguns países do Sudeste Asiático, como Tailândia e Vietnã, fizeram bons avanços em direção à meta da Cúpula Mundial da Alimentação. Mas a Ásia Meridional e a Central tiveram retrocessos na luta contra a fome.
Na África Subsaariana, uma em cada três pessoas – ou 236 milhões em 2007 – sofre de desnutrição crônica, a maior proporção de subnutridos numa população total, de acordo com o relatório. A maior parte do aumento de famintos foi num único país, a República Democrática do Congo, resultado de um conflito generalizado e persistente. O país africano passou de 11 milhões de desnutridos (em 2003-05) para 43 milhões, de 29% para 76% de sua população total.
De um modo geral, a África Subsaariana fez progressos na redução da proporção de pessoas com fome crônica, que baixou de 34% (1995-97) para 30% (2003-05). Gana, Congo, Nigéria, Moçambique e Malawi tiveram as maiores reduções. Gana foi o único país africano que atingiu os níveis de redução da fome da Cúpula Mundial da Alimentação e os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (erradicar a extrema pobreza e a fome). O crescimento da produção agrícola foi fundamental nesse resultado.
A América Latina e o Caribe tiveram seu maior sucesso na redução da fome antes do aumento dos preços dos alimentos. A crise fez subir o número de famintos na sub-região para 51 milhões em 2007.
Os países do Oriente Próximo e do Norte da África geralmente têm os menores níveis de subnutrição do mundo. Mas os conflitos no Afganistão e no Iraque e o aumento dos preços dos alimentos fizeram o número passar de 15 milhões em 1990-92 para 37 milhões em 2007.
Objetivo difícil de alcançar
Alguns países estavam no caminho para alcançar o objetivo da Cúpula antes do aumento dos preços, mas “mesmo esses sofreram retrocessos – parte do progresso foi perdida graças aos aumentos. A crise afetou principalmente os pobres, os agricultores sem terra e as famílias sustentadas por mulheres”, disse Ghanem. “Será necessário um enorme esforço global e também ações concretas para reduzir o número de famintos em 500 milhões em 2015”.
Exportações ameaçadas
A situação da fome no mundo pode se deteriorar ainda mais se a crise financeira atingir a economia de cada vez mais países. A redução da demanda nos países desenvolvidos ameaça a renda que os países em desenvolvimento obtêm pela exportação. Remessas de emigrantes, investimentos e outros fluxos de capital incluindo ajuda ao desenvolvimento também correm risco. As economias emergentes em particular estão sujeitas a longos impactos da restrição ao crédito, mesmo se a crise tiver curta duração.
Acesse o relatório completo em espanhol ou inglês pelo link:
http://www.fao.org/SOF/sofi/index_es.htm
[FAO - 09/12/2008]
Número de famintos sobe para 963 milhões
Causa foi a alta dos preços dos alimentos – e crise financeira pode agravar a situação
Roma e Brasília, 9 de dezembro de 2008 – Mais 40 milhões de pessoas foram atingidas pela fome este ano, principalmente devido à alta dos preços dos alimentos, segundo as estatísticas preliminares publicadas hoje pela FAO. Com isso o número total de famintos no mundo subiu para 963 milhões, comparado a 923 milhões em 2007. E a crise financeira e econômica pode levar ainda mais pessoas para a fome e a pobreza, alerta a FAO.
“Os preços dos alimentos têm baixado em todo o mundo desde o início de 2008, mas isso não acabou com a crise alimentar em muitos países pobres”, informou o Diretor-Geral Adjunto da FAO, Hafez Ghanem, durante o lançamento da nova edição do relatório da FAO sobre a fome, “O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo – (SOFI) 2008”.
“Para milhões de pessoas nos países em desenvolvimento, ter o alimento mínimo todos os dias para uma vida ativa e saudável é um sonho distante. As causas estruturais da fome, como a falta de acesso a terra, crédito e emprego, combinadas com os altos preços dos alimentos continuam sendo uma triste realidade”, completou.
Os preços dos cereais principais caíram mais de 50% de seus picos no início de 2008, mas permanecem altos comparados a anos anteriores. Apesar da forte queda nos últimos meses, o Índice de Preços FAO permanecia 28% mais alto em outubro de 2008, comparado a outubro de 2006.
Como os preços das sementes e fertilizantes (e outros insumos) mais que dobraram desde 2006, os agricultures mais pobres não puderam aumentar a produção. Mas os de mais recursos, particularmente dos países desenvolvidos, conseguiram suportar os aumentos e expandir o plantio. Como resultado, a produção de cereais nos países desenvolvidos deve subir pelo menos 10% em 2008. E nos países em desenvolvimento o aumento não deve passar de 1%.
“Se a queda de preços e a restrição ao crédito associadas à crise econômica forçarem os agricultores a produzir menos alimentos, no ano que vem poderemos assistir a outra brusca alta de preços”, acrescentou Ghanem. “O objetivo da Cúpula Mundial de Alimentos de 1996, de reduzir à metade o número de famintos em 2015, requer um forte compromisso político e investimentos em países pobres de pelo menos US$30 bilhões por ano para agricultura e proteção social aos pobres”, concluiu.
O mapa da fome
A grande maioria da população subnutrida – 907 milhões – vive nos países em desenvolvimento, de acordo com os números de 2007 do “Estado da Insegurança Alimentar Mundial”. Desses, 65% estão concentrados em apenas sete países: Índia, China, República Democrática do Congo, Bangladesh, Indonésia, Paquistão e Etiópia. Progressos nos países de maior população teriam um importante impacto na redução global da fome.
Quase dois terços da população faminta do mundo vive na Ásia (583 milhões em 2007), continente com progresso relativamente lento na redução da fome. As notícias positivas são de que alguns países do Sudeste Asiático, como Tailândia e Vietnã, fizeram bons avanços em direção à meta da Cúpula Mundial da Alimentação. Mas a Ásia Meridional e a Central tiveram retrocessos na luta contra a fome.
Na África Subsaariana, uma em cada três pessoas – ou 236 milhões em 2007 – sofre de desnutrição crônica, a maior proporção de subnutridos numa população total, de acordo com o relatório. A maior parte do aumento de famintos foi num único país, a República Democrática do Congo, resultado de um conflito generalizado e persistente. O país africano passou de 11 milhões de desnutridos (em 2003-05) para 43 milhões, de 29% para 76% de sua população total.
De um modo geral, a África Subsaariana fez progressos na redução da proporção de pessoas com fome crônica, que baixou de 34% (1995-97) para 30% (2003-05). Gana, Congo, Nigéria, Moçambique e Malawi tiveram as maiores reduções. Gana foi o único país africano que atingiu os níveis de redução da fome da Cúpula Mundial da Alimentação e os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (erradicar a extrema pobreza e a fome). O crescimento da produção agrícola foi fundamental nesse resultado.
A América Latina e o Caribe tiveram seu maior sucesso na redução da fome antes do aumento dos preços dos alimentos. A crise fez subir o número de famintos na sub-região para 51 milhões em 2007.
Os países do Oriente Próximo e do Norte da África geralmente têm os menores níveis de subnutrição do mundo. Mas os conflitos no Afganistão e no Iraque e o aumento dos preços dos alimentos fizeram o número passar de 15 milhões em 1990-92 para 37 milhões em 2007.
Objetivo difícil de alcançar
Alguns países estavam no caminho para alcançar o objetivo da Cúpula antes do aumento dos preços, mas “mesmo esses sofreram retrocessos – parte do progresso foi perdida graças aos aumentos. A crise afetou principalmente os pobres, os agricultores sem terra e as famílias sustentadas por mulheres”, disse Ghanem. “Será necessário um enorme esforço global e também ações concretas para reduzir o número de famintos em 500 milhões em 2015”.
Exportações ameaçadas
A situação da fome no mundo pode se deteriorar ainda mais se a crise financeira atingir a economia de cada vez mais países. A redução da demanda nos países desenvolvidos ameaça a renda que os países em desenvolvimento obtêm pela exportação. Remessas de emigrantes, investimentos e outros fluxos de capital incluindo ajuda ao desenvolvimento também correm risco. As economias emergentes em particular estão sujeitas a longos impactos da restrição ao crédito, mesmo se a crise tiver curta duração.
Acesse o relatório completo em espanhol ou inglês pelo link:
http://www.fao.org/SOF/sofi/index_es.htm
domingo, 5 de outubro de 2008
Os cientistas loucos da agroindústria
4 de Outubro de 2008 às 20h 00m
Ao perseguirem o lucro máximo, as empresas gigantes da agroindústria provocam, no fim do milênio, um inesperado “grande medo”: o da alimentação cotidiana. É longa a lista dos produtos de consumo adulterados, da “vaca louca” à galinha com dioxina, da carne de gado com hormônios à soja transgênica, da água mineral à Coca-Cola contaminadas.
François Dufour
A crise na agroindústria na Bélgica com o caso da galinha com dioxina questiona as orientações da Política Agrícola Comum (PAC) européia, cuja ambição atual é adaptar-se à globalização.
Quando, nos anos 80, os lobistas britânicos da agroindústria, desejosos de fazer despencar de qualquer maneira os custos de produção, liberaram o setor da carne bovina, não esperavam pelos efeitos desastrosos de sua decisão sobre a saúde animal e humana: em 1996, o caso da encefalopatia espongiforme bovina (ESB), chamado de “vaca louca”, lançou suspeitas sobre certas práticas agrícolas. Entretanto, é sobre os agricultores que o descrédito recaiu, apesar deles serem vítimas dos fabricantes de alimentos para o gado, e de seus aliados, os matadouros.
A responsabilidade desta situação não cabe somente aos britânicos: ela é compartilhada pelas autoridades da Comunidade Européia e tem sua origem na orientação que deram à PAC. E não foi por falta de alerta: desde 4 de abril de 1996, a Confederação Camponesa interpelava as autoridades francesas e belgas sobre as medidas urgentes a serem postas em prática proibindo a utilização de farinhas animais na alimentação de todos os animais domesticados. Em Paris, recebeu como resposta que a identificação de “carne bovina francesa” e uma total “transparência” daria todas as garantias. Ingenuidade ou hipocrisia? A manutenção da autorização para utilizar todas as farinhas para alimentar os porcos e as aves abria o caminho para as ilegalidades e os desgovernos. Foi desse modo que cinco meses mais tarde, em 1997, uma epidemia de peste suína apareceu nos Países Baixos, destruindo metade da criação: foi preciso abater milhões de porcos. Custo da operação: 1,1 bilhões de dólares, metade desta soma recaindo no bolso dos contribuintes europeus.
Concentração de animais
Nenhuma medida isolada solucionará o problema, que tem como origem a imposição de um modelo produtivista, organizado, via PAC, para único benefício dos lobbies da agroindústria, e em primeiro lugar das transnacionais da alimentação animal, produção de antibióticos e ativadores do crescimento. Os custos de utilização dos antibióticos são avaliados oficialmente em cerca de 67 dólares por suíno fêmea, numa criação de menos de 100 animais. Mas, quando a produção se concentra num mesmo lugar, estes custos podem superar a soma de 170 dólares por cabeça. O objetivo agora não é mais cuidar do animal, mas obter ganhos de peso artificial. No entanto, os pesquisadores em microbiologia têm, há muito tempo, demonstrado que, concentrando os animais, a industrialização da criação concentra também os elementos patogênicos e os riscos.
Sabemos que as salmonelas, muito presentes no setor avícola, estão na origem de cerca de 80% das infecções tóxico-alimentares coletivas recenseadas na França. Por outro lado, as bactérias tornam-se cada vez mais resistentes a antibióticos consumidos em quantidades excessivas, com evidentes inconvenientes no tratamento das doenças infecciosas. O comitê científico da União Européia (composto de 16 experts independentes) publicou um relatório nesse sentido, no qual pede a sua interdição — sem ter conseguido ser ouvido até hoje em Bruxelas. É preciso dizer que este ramo do mercado farmacêutico mundial representa uns 250 bilhões de dólares…
Quanto à utilização — posta em questão de maneira espetacular depois da “vaca louca” — das farinhas animais como proteínas incorporadas na alimentação do gado a fim de equilibrar as rações, ela não é nada nova. A criação industrial intensiva construiu seu poder e sua estratégia de conquista dos mercados mundiais sugando uma fonte inesgotável: os restos do abate reciclados que em seguida são dados aos animais como alimentação [1]. A pesquisa do menor custo para obter o maior lucro levou os responsáveis dos grandes grupos de fabricantes de farinha a recusar sistematicamente as regras públicas de transparência e de informação aos criadores sobre as características e composições dos produtos fabricados. Em julho de 1996, a Confederação Camponesa fez a primeira queixa no caso da ESB [2], mas a justiça é lenta. Os poderes públicos francês e europeu, muitas vezes prontos a tomar medidas, inclusive legislativas, são bem mais lentos quando se trata de aplicá-las e de fazer respeitá-las.
Sanções comerciais
O escândalo da contaminação de carnes pela dioxina [3], substância altamente cancerígena e presente em doses consideráveis em certos alimentos do gado, como o caso da ESB, revela novamente a apatia, ou até mesmo a cumplicidade, dos serviços estatais em relação aos poderes financeiros, apesar dos discursos pacificadores dos governos. As repercussões serão graves — enquanto aumentarem “os medos alimentares” — para os criadores de aves, de porcos, até mesmo de bovinos: eliminação dos rebanhos atingidos, redução do preço, revisões unilaterais dos contratos de produção para os produtores integrados às empresas de alimentos. Porém, além da dioxina, outros perigos espreitam, como os ligados à acumulação de metais pesados nos solos através da fertilização com o lodo do tratamento de efluentes, sem esquecer as conseqüências, ainda desconhecidas para o meio ambiente e para a saúde, das manipulações genéticas com animais e vegetais.
As instâncias comunitárias até agora resistiram à pressão das firmas farmacêuticas que desejam impor hormônios leiteiros e animais, embora seja conhecido que a Bélgica é um país-chave para o tráfico destes hormônios na Europa. Entretanto, os Estados Unidos — que querem exportar a qualquer preço seu gado bovino para a Europa dos Quinze —, já marcaram sérios pontos a seu favor no seio da OMC que pouco se importa com as considerações de saúde pública [4]. Os europeus, como preço de sua recusa, devem pagar 253 milhões de dólares, sob a forma de aumento dos direitos de importação de certas exportações destinadas aos Estados Unidos (202 milhões) e ao Canadá (51 milhões). A Comissão Européia não se opõe ao princípio destas sanções, apenas reclama quanto ao seu montante. Ela se recusa a invocar o princípio de precaução, que está previsto no acordo das medidas sanitárias e fito-sanitárias concluído em 1994 por ocasião da Rodada Uruguai do Acordo Geral Sobre as Tarifas Aduaneiras e o Comércio (GATT), sob o pretexto de que isso poderia ser considerado por Washington como uma provocação!
Como vimos em fevereiro de 1999 em Cartagena (Colômbia) [5], um outro conflito comercial de envergadura se prepara entre os países que produzem e comercializam vegetais geneticamente modificados (Argentina, Austrália, Canadá, China, Estados Unidos, México) e Europa, onde somente nove variedades são autorizadas para a cultura e para a importação desde 1994. Mas somente a pressão dos consumidores e os movimentos de cidadãos europeus obrigou a Comissão e a maioria dos governos a ainda não liberalizar totalmente o comércio dos transgênicos, estas novas ferramentas de apropriação das sementes e das plantas por algumas firmas: Novartis, Monsanto, Pioneer-DuPont, Agrevo, etc. Desde o surgimento da agricultura, os agricultores semeiam seus campos a partir de suas próprias colheitas. Foram eles que há milênios selecionaram e adaptaram as plantas em função de suas necessidades e das características do ambiente. Hoje, os grandes grupos fabricantes de sementes selecionaram as sementes híbridas, com performances adaptadas à agricultura produtivista. Estes híbridos não podem ser semeados, enquanto as plantas autógenas como o trigo, a cevada e a colza são reutilizadas em 50% dos casos. Os fabricantes de sementes não têm, evidentemente, nenhum interesse em que os agricultores possam voltar a semear suas terras a partir de suas próprias colheitas. Eles tentam convencê-los de que as manipulações genéticas lhes darão margens financeiras maiores.
Enganos
Esta pretensão constitui um engano intelectual, em primeiro lugar, porque ela postula que a agricultura produtivista, importante consumidora de insumos, pesticidas e fungicidas de todo tipo é o único modelo apto a satisfazer as necessidades humanas. Ora, são numerosos os agricultores que desenvolvem outros modos de produção (especialmente a agricultura biológica), bastante competitivos, porém preocupados com a natureza e os consumidores. Em seguida, é um engano econômico, porque deixar as sementes nas mãos de algumas firmas multinacionais é aceitar uma integração cada vez mais forte dos agricultores ao complexo genético-industrial [6].
Os riscos do plantio dos transgênicos para a saúde e o meio ambiente são objeto de debates entre os cientistas. E a tendência é a mais extrema prudência, particularmente após numerosos estudos demonstrando os efeitos nefastos sobre as borboletas, do milho transgênico Bt, produzido pela Monsanto, Novartis e Pioneer. Porém, agindo como aprendizes de feiticeiros, os governos alemão, espanhol e francês autorizaram a sua comercialização [7].
Após o caso da dioxina, os ministros da agricultura dos Quinze, não deram prosseguimento à demanda francesa de proibição das farinhas animais, já que se coloca o problema de soluções para a substituição de proteínas vegetais.
A Europa, que fez a triste escolha do desenvolvimento de cereais a preço baixo, destinados ao mercado mundial, é fortemente deficitária em plantas ricas em proteínas e oleaginosas. Sua taxa de auto-suficiência para a colza, o girassol e a soja é somente de 22% para o ano comercial 1996-1997 [8]. Também, pudera: durante as negociações do GATT de 1993, ela aquiesceu às exigências de Washington, aceitando limitar em 5 482 hectares a sua área cultivada de oleaginosas, de modo a garantir ao agro-business americano uma colocação sem limites de suas tortas de soja e produtos de substituição dos cereais que entram na Comunidade livres de qualquer direito de aduana. Portanto, é para os Estados Unidos e para os países da América Latina — para eventualmente substituir as farinhas animais — que os agricultores europeus deverão voltar-se para seus fornecimentos. Ou seja, para os países onde milhões de hectares de transgênicos são cultivados (de acordo com fontes profissionais, 40% da soja e 20% do milho norte-americanos são trangênicos) e onde as multinacionais se negam a criar filiais de condicionamento e de comercialização separadas entre transgênicos e não transgênicos. Dito de outro modo, devido à falta de um sistema de etiquetagem claro, para a alimentação tanto humana quanto animal, os consumidores e os agricultores são tomados como reféns e têm apenas a escolha entre a peste das farinhas animais e a cólera dos transgênicos.
Dois mercados diferentes
Mais além do apoio dado pela França, dia 24 de junho, à proposta grega de suspensão de toda nova venda de transgênicos no plano europeu, as associações (France Nature Environnement, Greenpeace, Attac, etc.) reclamam uma moratória sobre o cultivo e a comercialização das tecnologias genéticas e a aplicação do princípio de precaução. Uma grande parte dos produtores, dependentes das grandes firmas nos planos tecnológico, econômico e financeiro, não tem mais margem de manobra. A indústria se apoderou do agricultor ao lhe impor suas próprias normas de fabricação de matérias primas de preço baixo, tornando-o uma cobaia descartável, que se joga no lixo quando não serve mais.
A fome no mundo não é um problema técnico que se possa resolver através das tecnologias genéticas. Ela será solucionada apenas pela soberania alimentar [9], isto é, pelo reforço de uma autonomia política dos países em vias de desenvolvimento, pelo reconhecimento de seu direito de se proteger das importações desleais e do dumping econômico, social e ecológico dos países ricos. É conveniente orientar-se, então, para uma agricultura que coloca no centro de suas preocupações a dimensão social, territorial e ambiental, e não uma agricultura dual onde os pobres se empanturrariam de uma alimentação de má qualidade, produzida por um punhado de agricultores ricos, e os ricos consumiriam uma alimentação de qualidade, fornecida por agricultores pobres.
Colocar a PAC, como fez a Comissão européia, a serviço da “vocação exportadora da agricultura européia” é uma grave confusão entre dois mercados de natureza fundamentalmente oposta: o dos produtos básicos (leite em pó, cereais, carnes brancas e cortes baixos de carne vermelha) e o de produtos elaborados e de importante valor agregado. O mercado mundial dos produtos básicos é alimentado pelos excedentes agrícolas dos grandes (União Européia, Canadá, Estados Unidos). Os preços deste mercado são extremamente baixos e permanecerão assim por muito tempo, se dermos crédito a um relatório recente do Banco Mundial: preço do leite entre US$ 0,10 dólares e US$ 0,17 o litro; quilograma do porco entre US$ 0,25 e US$ 0,40; e da vitela a US$ 0,75. Para produzir a preços tão baixos, é preciso eliminar todas as obrigações na produção e fazer recuar todos os limites: ateliers que se tornaram gigantescos, terras e ajudas públicas monopolizadas por alguns agro managers.
O mercado dos produtos elaborados ou de importante valor agregado obedece a regras fundamentalmente diferentes. Os agricultores, mesmo que busquem atingir a maior produtividade, não se enfrentam diretamente. As produções seguem normas muito claras e respondem a um conjunto de obrigações precisas. Elas se fazem em zonas geográficas bem identificadas e permitem valorizar um conhecimento. Contribuem para uma verdadeira economia local gerada por um valor agregado importante. Esta agricultura é a única alternativa a um tipo de desenvolvimento fundado na globalização cega das trocas. As catástrofes da “vaca louca” e da galinha com dioxina podem ser apenas o prelúdio de outras, se não for constituída uma frente ampla reunindo agricultores, consumidores e movimentos de cidadãos para recusar esta forma de ditadura dos mercados que representa o poderio das multinacionais da agroindústrias e indústria química.
[1] Sobre o conteúdo das farinhas e os métodos de matadouros, ler extratos do relatório confidencial da Direção Nacional de Pesquisas e de Repressão das Fraudes (DNERF) publicadas no jornal Le Canard Enchaîné, 9 junho 1999.
[2] Bertrand Hervieu, “Folie des vaches, folie des hommes” (Loucura das vacas, loucura dos homens), Le Monde diplomatique, maio 1996.
[3] As dioxinas são poluentes orgânicos resistentes, classificados de “cancerígenos humanos conhecidos” pelo Centre International de Recherche sur le Cancer (CIRC). Trata-se essencialmente de sub produtos de procedimentos industriais: fundição, branqueamento do papel, fabricação de certos herbicidas e pesticidas e, sobretudo, incineração do lixo, porque esta combustão é incompleta. O termo “dioxina” designa uma família de compostos (mais de 400) aparentados à mais tóxica de todas, a TCDD.
[4] Desde 1989, a União Européia proibiu a utilização dos hormônios de crescimento na alimentação animal, devido os riscos que elas comportam para a saúde humana. Os Estados Unidos e o Canada obtiveram em 1997, um julgamento da OMC condenando esta “violação das regras do comércio mundial” que se refere a 10 mil toneladas de importações, sobre um total de cerca de 45 mil toneladas. Dia 12 de julho, um grupo de arbitragem da OMC deveria estatuir sobre o montante de compensações que a União Européia deverá pagar aos dois países reclamantes.
[5] Inaugurada dia 14 de fevereiro, a conferência de Cartagena sobre os produtos transgênicos procuravaestabelecer um “protocolo sobre a prevenção dos riscos biotecnológicos” suscitados por tais produtos. O “grupo de Miami”, levado pelos americanos se opôs, transferindo o problema para a OMC, forum onde o comércio prima sobre qualquer outra consideração (Le Monde, 26 fevereiro, 1999).
[6] Ler Jean Pierre Berlan e Richard C. Lewontin, “La menace du complexe genético-industriel” (A ameaça do complexo genético-industrial), Le Monde diplomatique, dezembro 1998.
[7] Um estudo da Universidade de Cornell, publicado na revista Nature de 20 maio 1999, e confirmada pelos pesquisadores da Universidade de Iowa, revelou uma taxa de mortalidade de 44% em 48 horas nas larvas da borboleta monarca alimentadas com leite contaminado com o pólen do milho Bt. Trabalhos realizados pelo Greenpeace com um entomologista da Universidade de Exeter mostraram que este milho poderia ser nefasto para mais de cem espécies, entre elas o o pavão, e duas variedades específicas de borboletas. Greenpeace International: www.greenpeace.org
[8] Jacques Loyat e Yves Petit, La politique agricole commune, La Documentation française, Paris, 1999.
[9] Edgar Pisani, “Pour que le monde nourrisse le monde” (Para que o mundo alimente o mundo), Le monde diplomatique, abril 1995.
“Le Monde diplomatique”
Extraído do blog Controvérsia
Ao perseguirem o lucro máximo, as empresas gigantes da agroindústria provocam, no fim do milênio, um inesperado “grande medo”: o da alimentação cotidiana. É longa a lista dos produtos de consumo adulterados, da “vaca louca” à galinha com dioxina, da carne de gado com hormônios à soja transgênica, da água mineral à Coca-Cola contaminadas.
François Dufour
A crise na agroindústria na Bélgica com o caso da galinha com dioxina questiona as orientações da Política Agrícola Comum (PAC) européia, cuja ambição atual é adaptar-se à globalização.
Quando, nos anos 80, os lobistas britânicos da agroindústria, desejosos de fazer despencar de qualquer maneira os custos de produção, liberaram o setor da carne bovina, não esperavam pelos efeitos desastrosos de sua decisão sobre a saúde animal e humana: em 1996, o caso da encefalopatia espongiforme bovina (ESB), chamado de “vaca louca”, lançou suspeitas sobre certas práticas agrícolas. Entretanto, é sobre os agricultores que o descrédito recaiu, apesar deles serem vítimas dos fabricantes de alimentos para o gado, e de seus aliados, os matadouros.
A responsabilidade desta situação não cabe somente aos britânicos: ela é compartilhada pelas autoridades da Comunidade Européia e tem sua origem na orientação que deram à PAC. E não foi por falta de alerta: desde 4 de abril de 1996, a Confederação Camponesa interpelava as autoridades francesas e belgas sobre as medidas urgentes a serem postas em prática proibindo a utilização de farinhas animais na alimentação de todos os animais domesticados. Em Paris, recebeu como resposta que a identificação de “carne bovina francesa” e uma total “transparência” daria todas as garantias. Ingenuidade ou hipocrisia? A manutenção da autorização para utilizar todas as farinhas para alimentar os porcos e as aves abria o caminho para as ilegalidades e os desgovernos. Foi desse modo que cinco meses mais tarde, em 1997, uma epidemia de peste suína apareceu nos Países Baixos, destruindo metade da criação: foi preciso abater milhões de porcos. Custo da operação: 1,1 bilhões de dólares, metade desta soma recaindo no bolso dos contribuintes europeus.
Concentração de animais
Nenhuma medida isolada solucionará o problema, que tem como origem a imposição de um modelo produtivista, organizado, via PAC, para único benefício dos lobbies da agroindústria, e em primeiro lugar das transnacionais da alimentação animal, produção de antibióticos e ativadores do crescimento. Os custos de utilização dos antibióticos são avaliados oficialmente em cerca de 67 dólares por suíno fêmea, numa criação de menos de 100 animais. Mas, quando a produção se concentra num mesmo lugar, estes custos podem superar a soma de 170 dólares por cabeça. O objetivo agora não é mais cuidar do animal, mas obter ganhos de peso artificial. No entanto, os pesquisadores em microbiologia têm, há muito tempo, demonstrado que, concentrando os animais, a industrialização da criação concentra também os elementos patogênicos e os riscos.
Sabemos que as salmonelas, muito presentes no setor avícola, estão na origem de cerca de 80% das infecções tóxico-alimentares coletivas recenseadas na França. Por outro lado, as bactérias tornam-se cada vez mais resistentes a antibióticos consumidos em quantidades excessivas, com evidentes inconvenientes no tratamento das doenças infecciosas. O comitê científico da União Européia (composto de 16 experts independentes) publicou um relatório nesse sentido, no qual pede a sua interdição — sem ter conseguido ser ouvido até hoje em Bruxelas. É preciso dizer que este ramo do mercado farmacêutico mundial representa uns 250 bilhões de dólares…
Quanto à utilização — posta em questão de maneira espetacular depois da “vaca louca” — das farinhas animais como proteínas incorporadas na alimentação do gado a fim de equilibrar as rações, ela não é nada nova. A criação industrial intensiva construiu seu poder e sua estratégia de conquista dos mercados mundiais sugando uma fonte inesgotável: os restos do abate reciclados que em seguida são dados aos animais como alimentação [1]. A pesquisa do menor custo para obter o maior lucro levou os responsáveis dos grandes grupos de fabricantes de farinha a recusar sistematicamente as regras públicas de transparência e de informação aos criadores sobre as características e composições dos produtos fabricados. Em julho de 1996, a Confederação Camponesa fez a primeira queixa no caso da ESB [2], mas a justiça é lenta. Os poderes públicos francês e europeu, muitas vezes prontos a tomar medidas, inclusive legislativas, são bem mais lentos quando se trata de aplicá-las e de fazer respeitá-las.
Sanções comerciais
O escândalo da contaminação de carnes pela dioxina [3], substância altamente cancerígena e presente em doses consideráveis em certos alimentos do gado, como o caso da ESB, revela novamente a apatia, ou até mesmo a cumplicidade, dos serviços estatais em relação aos poderes financeiros, apesar dos discursos pacificadores dos governos. As repercussões serão graves — enquanto aumentarem “os medos alimentares” — para os criadores de aves, de porcos, até mesmo de bovinos: eliminação dos rebanhos atingidos, redução do preço, revisões unilaterais dos contratos de produção para os produtores integrados às empresas de alimentos. Porém, além da dioxina, outros perigos espreitam, como os ligados à acumulação de metais pesados nos solos através da fertilização com o lodo do tratamento de efluentes, sem esquecer as conseqüências, ainda desconhecidas para o meio ambiente e para a saúde, das manipulações genéticas com animais e vegetais.
As instâncias comunitárias até agora resistiram à pressão das firmas farmacêuticas que desejam impor hormônios leiteiros e animais, embora seja conhecido que a Bélgica é um país-chave para o tráfico destes hormônios na Europa. Entretanto, os Estados Unidos — que querem exportar a qualquer preço seu gado bovino para a Europa dos Quinze —, já marcaram sérios pontos a seu favor no seio da OMC que pouco se importa com as considerações de saúde pública [4]. Os europeus, como preço de sua recusa, devem pagar 253 milhões de dólares, sob a forma de aumento dos direitos de importação de certas exportações destinadas aos Estados Unidos (202 milhões) e ao Canadá (51 milhões). A Comissão Européia não se opõe ao princípio destas sanções, apenas reclama quanto ao seu montante. Ela se recusa a invocar o princípio de precaução, que está previsto no acordo das medidas sanitárias e fito-sanitárias concluído em 1994 por ocasião da Rodada Uruguai do Acordo Geral Sobre as Tarifas Aduaneiras e o Comércio (GATT), sob o pretexto de que isso poderia ser considerado por Washington como uma provocação!
Como vimos em fevereiro de 1999 em Cartagena (Colômbia) [5], um outro conflito comercial de envergadura se prepara entre os países que produzem e comercializam vegetais geneticamente modificados (Argentina, Austrália, Canadá, China, Estados Unidos, México) e Europa, onde somente nove variedades são autorizadas para a cultura e para a importação desde 1994. Mas somente a pressão dos consumidores e os movimentos de cidadãos europeus obrigou a Comissão e a maioria dos governos a ainda não liberalizar totalmente o comércio dos transgênicos, estas novas ferramentas de apropriação das sementes e das plantas por algumas firmas: Novartis, Monsanto, Pioneer-DuPont, Agrevo, etc. Desde o surgimento da agricultura, os agricultores semeiam seus campos a partir de suas próprias colheitas. Foram eles que há milênios selecionaram e adaptaram as plantas em função de suas necessidades e das características do ambiente. Hoje, os grandes grupos fabricantes de sementes selecionaram as sementes híbridas, com performances adaptadas à agricultura produtivista. Estes híbridos não podem ser semeados, enquanto as plantas autógenas como o trigo, a cevada e a colza são reutilizadas em 50% dos casos. Os fabricantes de sementes não têm, evidentemente, nenhum interesse em que os agricultores possam voltar a semear suas terras a partir de suas próprias colheitas. Eles tentam convencê-los de que as manipulações genéticas lhes darão margens financeiras maiores.
Enganos
Esta pretensão constitui um engano intelectual, em primeiro lugar, porque ela postula que a agricultura produtivista, importante consumidora de insumos, pesticidas e fungicidas de todo tipo é o único modelo apto a satisfazer as necessidades humanas. Ora, são numerosos os agricultores que desenvolvem outros modos de produção (especialmente a agricultura biológica), bastante competitivos, porém preocupados com a natureza e os consumidores. Em seguida, é um engano econômico, porque deixar as sementes nas mãos de algumas firmas multinacionais é aceitar uma integração cada vez mais forte dos agricultores ao complexo genético-industrial [6].
Os riscos do plantio dos transgênicos para a saúde e o meio ambiente são objeto de debates entre os cientistas. E a tendência é a mais extrema prudência, particularmente após numerosos estudos demonstrando os efeitos nefastos sobre as borboletas, do milho transgênico Bt, produzido pela Monsanto, Novartis e Pioneer. Porém, agindo como aprendizes de feiticeiros, os governos alemão, espanhol e francês autorizaram a sua comercialização [7].
Após o caso da dioxina, os ministros da agricultura dos Quinze, não deram prosseguimento à demanda francesa de proibição das farinhas animais, já que se coloca o problema de soluções para a substituição de proteínas vegetais.
A Europa, que fez a triste escolha do desenvolvimento de cereais a preço baixo, destinados ao mercado mundial, é fortemente deficitária em plantas ricas em proteínas e oleaginosas. Sua taxa de auto-suficiência para a colza, o girassol e a soja é somente de 22% para o ano comercial 1996-1997 [8]. Também, pudera: durante as negociações do GATT de 1993, ela aquiesceu às exigências de Washington, aceitando limitar em 5 482 hectares a sua área cultivada de oleaginosas, de modo a garantir ao agro-business americano uma colocação sem limites de suas tortas de soja e produtos de substituição dos cereais que entram na Comunidade livres de qualquer direito de aduana. Portanto, é para os Estados Unidos e para os países da América Latina — para eventualmente substituir as farinhas animais — que os agricultores europeus deverão voltar-se para seus fornecimentos. Ou seja, para os países onde milhões de hectares de transgênicos são cultivados (de acordo com fontes profissionais, 40% da soja e 20% do milho norte-americanos são trangênicos) e onde as multinacionais se negam a criar filiais de condicionamento e de comercialização separadas entre transgênicos e não transgênicos. Dito de outro modo, devido à falta de um sistema de etiquetagem claro, para a alimentação tanto humana quanto animal, os consumidores e os agricultores são tomados como reféns e têm apenas a escolha entre a peste das farinhas animais e a cólera dos transgênicos.
Dois mercados diferentes
Mais além do apoio dado pela França, dia 24 de junho, à proposta grega de suspensão de toda nova venda de transgênicos no plano europeu, as associações (France Nature Environnement, Greenpeace, Attac, etc.) reclamam uma moratória sobre o cultivo e a comercialização das tecnologias genéticas e a aplicação do princípio de precaução. Uma grande parte dos produtores, dependentes das grandes firmas nos planos tecnológico, econômico e financeiro, não tem mais margem de manobra. A indústria se apoderou do agricultor ao lhe impor suas próprias normas de fabricação de matérias primas de preço baixo, tornando-o uma cobaia descartável, que se joga no lixo quando não serve mais.
A fome no mundo não é um problema técnico que se possa resolver através das tecnologias genéticas. Ela será solucionada apenas pela soberania alimentar [9], isto é, pelo reforço de uma autonomia política dos países em vias de desenvolvimento, pelo reconhecimento de seu direito de se proteger das importações desleais e do dumping econômico, social e ecológico dos países ricos. É conveniente orientar-se, então, para uma agricultura que coloca no centro de suas preocupações a dimensão social, territorial e ambiental, e não uma agricultura dual onde os pobres se empanturrariam de uma alimentação de má qualidade, produzida por um punhado de agricultores ricos, e os ricos consumiriam uma alimentação de qualidade, fornecida por agricultores pobres.
Colocar a PAC, como fez a Comissão européia, a serviço da “vocação exportadora da agricultura européia” é uma grave confusão entre dois mercados de natureza fundamentalmente oposta: o dos produtos básicos (leite em pó, cereais, carnes brancas e cortes baixos de carne vermelha) e o de produtos elaborados e de importante valor agregado. O mercado mundial dos produtos básicos é alimentado pelos excedentes agrícolas dos grandes (União Européia, Canadá, Estados Unidos). Os preços deste mercado são extremamente baixos e permanecerão assim por muito tempo, se dermos crédito a um relatório recente do Banco Mundial: preço do leite entre US$ 0,10 dólares e US$ 0,17 o litro; quilograma do porco entre US$ 0,25 e US$ 0,40; e da vitela a US$ 0,75. Para produzir a preços tão baixos, é preciso eliminar todas as obrigações na produção e fazer recuar todos os limites: ateliers que se tornaram gigantescos, terras e ajudas públicas monopolizadas por alguns agro managers.
O mercado dos produtos elaborados ou de importante valor agregado obedece a regras fundamentalmente diferentes. Os agricultores, mesmo que busquem atingir a maior produtividade, não se enfrentam diretamente. As produções seguem normas muito claras e respondem a um conjunto de obrigações precisas. Elas se fazem em zonas geográficas bem identificadas e permitem valorizar um conhecimento. Contribuem para uma verdadeira economia local gerada por um valor agregado importante. Esta agricultura é a única alternativa a um tipo de desenvolvimento fundado na globalização cega das trocas. As catástrofes da “vaca louca” e da galinha com dioxina podem ser apenas o prelúdio de outras, se não for constituída uma frente ampla reunindo agricultores, consumidores e movimentos de cidadãos para recusar esta forma de ditadura dos mercados que representa o poderio das multinacionais da agroindústrias e indústria química.
[1] Sobre o conteúdo das farinhas e os métodos de matadouros, ler extratos do relatório confidencial da Direção Nacional de Pesquisas e de Repressão das Fraudes (DNERF) publicadas no jornal Le Canard Enchaîné, 9 junho 1999.
[2] Bertrand Hervieu, “Folie des vaches, folie des hommes” (Loucura das vacas, loucura dos homens), Le Monde diplomatique, maio 1996.
[3] As dioxinas são poluentes orgânicos resistentes, classificados de “cancerígenos humanos conhecidos” pelo Centre International de Recherche sur le Cancer (CIRC). Trata-se essencialmente de sub produtos de procedimentos industriais: fundição, branqueamento do papel, fabricação de certos herbicidas e pesticidas e, sobretudo, incineração do lixo, porque esta combustão é incompleta. O termo “dioxina” designa uma família de compostos (mais de 400) aparentados à mais tóxica de todas, a TCDD.
[4] Desde 1989, a União Européia proibiu a utilização dos hormônios de crescimento na alimentação animal, devido os riscos que elas comportam para a saúde humana. Os Estados Unidos e o Canada obtiveram em 1997, um julgamento da OMC condenando esta “violação das regras do comércio mundial” que se refere a 10 mil toneladas de importações, sobre um total de cerca de 45 mil toneladas. Dia 12 de julho, um grupo de arbitragem da OMC deveria estatuir sobre o montante de compensações que a União Européia deverá pagar aos dois países reclamantes.
[5] Inaugurada dia 14 de fevereiro, a conferência de Cartagena sobre os produtos transgênicos procuravaestabelecer um “protocolo sobre a prevenção dos riscos biotecnológicos” suscitados por tais produtos. O “grupo de Miami”, levado pelos americanos se opôs, transferindo o problema para a OMC, forum onde o comércio prima sobre qualquer outra consideração (Le Monde, 26 fevereiro, 1999).
[6] Ler Jean Pierre Berlan e Richard C. Lewontin, “La menace du complexe genético-industriel” (A ameaça do complexo genético-industrial), Le Monde diplomatique, dezembro 1998.
[7] Um estudo da Universidade de Cornell, publicado na revista Nature de 20 maio 1999, e confirmada pelos pesquisadores da Universidade de Iowa, revelou uma taxa de mortalidade de 44% em 48 horas nas larvas da borboleta monarca alimentadas com leite contaminado com o pólen do milho Bt. Trabalhos realizados pelo Greenpeace com um entomologista da Universidade de Exeter mostraram que este milho poderia ser nefasto para mais de cem espécies, entre elas o o pavão, e duas variedades específicas de borboletas. Greenpeace International: www.greenpeace.org
[8] Jacques Loyat e Yves Petit, La politique agricole commune, La Documentation française, Paris, 1999.
[9] Edgar Pisani, “Pour que le monde nourrisse le monde” (Para que o mundo alimente o mundo), Le monde diplomatique, abril 1995.
“Le Monde diplomatique”
Extraído do blog Controvérsia
Crise alimentar é o resultado do livro mercado e do abandono da política agrária
2 de Outubro de 2008 às 12h 00m
Questões Agrárias
Valéria Nader (colaborou Gabriel Brito)
Em face de mais uma crise mundial que parece explosiva, com a fome e a inflação de alimentos se tornando noticiário nos vários cantos do planeta, conversamos com o professor do departamento de Geografia da USP Ariovaldo Umbelino.
Para Umbelino, a atual situação não deixa a menor margem para diagnósticos ilusionistas: a crise alimentar resultou da total incapacidade do mercado para conduzir à segurança e à soberania alimentar. No Brasil, a ausência de reforma agrária foi também determinante, e a situação é tendencialmente explosiva em função da escalada dos biocombustíveis.
Confira abaixo entrevista exclusiva.
Correio da Cidadania: A que se pode atribuir, pensando globalmente, o atual problema da fome: à formação especulativa de estoques, à queda de safras, à tomada de terras para os cultivos agroindustriais, todos eles comprometendo a produção de alimentos?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, há de se levar em conta que a falta da produção de alimentos na atual conjuntura tem uma série de motivos, que vou tentar enumerar.
Primeiro, o que está em jogo é uma crise estrutural no interior do sistema produtivo que o capitalismo adotou no neoliberalismo, com a mudança da sistemática de controle da produção de alimentos, antes baseada no sistema de estoques e hoje baseada no livre comércio, ou seja, na disponibilidade dos estoques no mercado. Essa mudança está revelando agora suas conseqüências. Portanto, essa é uma primeira razão, e ela é estrutural.
Podemos também lembrar que há uma redução dos estoques em função da ‘subprime’, qual seja, dos problemas no mercado financeiro norte-americano. Uma parte dos fundos se dirigiu à compra de commodities (mercado de futuro), o que acelerou o processo especulativo em função da queda dos estoques e da possibilidade de oferta de alimentos no mercado futuro. Essas são questões estruturais e estão associadas.
A segunda razão é de natureza conjuntural, e deriva do aumento do preço do petróleo. Toda a produção do agronegócio pós-revolução verde, e agora, nesse período do neoliberalismo, está assentada no setor agroquímico, e evidentemente que este é comandado pela lógica do preço do petróleo. Se sobe o preço deste, o custo da agropecuária também sobe e, consequentemente, deriva daí parte da responsabilidade pelo aumento dos preços dos alimentos.
O terceiro motivo, nem por isso de menor importância, pois todos esses são processos simultâneos, está no aumento do consumo devido a uma certa melhoria das condições de algumas populações, sobretudo da China e da Índia, que têm ampliado a importação de alimentos. Mas não é essa a principal razão, como se quer fazer crer no Brasil.
CC: Nesse sentido, fazendo um parêntese para o Brasil, o presidente Lula chegou a declarar que a inflação de alimentos é decorrente de os pobres estarem consumindo mais, e não uma conseqüência da expansão do cultivo do biocombustível. Ao mesmo tempo, aparentemente corroborando a versão presidencial, sabemos que o motor do crescimento nos últimos meses tem sido realmente o aquecimento do mercado interno, em face da deterioração da balança comercial (exportações menos importações). Como você avalia essa situação?
AU: Isso é uma grande bobagem. É evidente que o aumento do consumo é parte da questão, mas não é nem a razão principal, muito menos a única, conforme disse.
CC: Mas voltando, então, aos determinantes da crise alimentar em escala global, você citaria algum outro fator, como, por exemplo, a produção dos biocombustíveis?
AU: Outra causa também conjuntural, que pode vir a se tornar estrutural, é a opção norte-americana pela produção do etanol a partir do milho, bem como o caminho tomado pelos países da União Européia de produzir o etanol a partir de grãos. É claro que essa opção dos EUA, hoje o maior produtor mundial de etanol, fez com que uma parte do milho destinado à alimentação humana e animal fosse destinada à produção de etanol, o que por sua vez gerou os mecanismos especulativos na queda dos estoques de milho. Essa queda, por sua vez, puxou pra cima os preços dos demais grãos: soja, trigo, arroz.
Volto a insistir, essa razão é conjuntural, mas pode vir a se tornar estrutural, porque os EUA não têm mais terras disponíveis à agricultura para ampliar sua produção de milho e continuar mantendo sua produção de trigo e soja. Essas três culturas competem entre si. Portanto, se aumenta a área de uma, diminui a de outra. Além do mais, ampliar a área de cultivo nos EUA sai muito caro, os preços dos alimentos não compensariam. E a essa questão interna dos EUA se soma o aumento do custo de produção, pelo efeito do petróleo.
Esse é, assim, o quadro que se apresenta no plano mundial.
CC: E como esse quadro rebate nos países emergentes, especificamente?
AU: Poderíamos dizer que os primeiros países onde esse rebatimento se deu de forma rápida foram os da Ásia, com a elevação dos preços do arroz, e também os países importadores de trigo. Nesses, o efeito foi imediato, pois, com a elevação do preço do trigo nos EUA, e consequentemente do trigo exportado para outras partes do mundo, os países importadores sentiram imediatamente a alta.
Quanto ao arroz, a elevação de seu preço fez com que os países produtores de arroz do sudeste asiático começassem a bloquear as exportações do produto, assim como agiu a Argentina com relação ao trigo.
Evidentemente que o lado cruel desse processo todo rebaterá na África, cujos povos precisam do trigo para sua alimentação básica, em função do grau de miséria que a região sofre. E aí entra o grito da ONU, pois ela tem seus recursos destinados a fornecer alimento a essa população que sofre com a fome e percebeu que não teria como comprar esses produtos em razão da elevação dos preços.
Mas não só a África sofre, como também a América, como se viu no Haiti.
CC: E o Brasil, como fica nessa conjuntura?
AU: No Brasil, o primeiro efeito aparece no trigo, já que, com o bloqueio das exportações da Argentina, precisamos comprar no mercado mundial, ou seja, nos EUA e Canadá, onde há trigo disponível para exportação. Sendo assim, os preços se elevaram. Não só os preços, pois agora há também o frete, que não existia quando se trazia trigo da Argentina.
Pois bem, o Brasil tem um consumo anual de 10 milhões de toneladas de trigo e produz três milhões, o que nos torna o maior importador mundial de trigo hoje. Sendo assim, inevitavelmente o efeito do trigo terá suas conseqüências no Brasil, não só no pão, mas em todos os produtos nos quais se utiliza trigo.
Somos o único país do mundo em que se prega essa tese maluca do neoliberalismo, de que comida tem de ser oferecida no mercado a quem puder pagar mais, como propõem os economistas neoliberais. Claro que isso tira do país a possibilidade de obter uma mínima segurança alimentar, nem digo soberania.
A lógica do neoliberalismo é essa: manda-se comida a quem paga mais, não a quem tem fome. Nem para o próprio povo do país. A lógica neoliberal não está assentada na segurança, quanto menos na soberania alimentar.
Como parte desse mecanismo, agravando-o ainda mais, vêm os possíveis desdobramentos futuros. O Brasil, com seus três milhões de toneladas produzidas de trigo, vai fazer o quê se a demanda do mercado mundial for superior? Os produtores de trigo vão exportar, como fizeram no ano passado.
Pensando, por exemplo, no feijão, por que chegou a faltar esse produto em nosso mercado, se o Brasil é um grande produtor mundial? Esse foi o reflexo indireto de outros fatores. O aumento, já desde o ano passado, do preço do milho e da soja, assim como o efeito da subida dos preços desses produtos no mercado interno, fez com que as terras destinadas à produção do feijão não o fossem mais. Os capitalistas converteram a área de produção de feijão em terra para cultivo do milho, que tinha preços mais vantajosos no mercado mundial, em função da escalada provocada pelo etanol americano. Escalada que atingiu também a soja, que, na falta do milho, o substitui na ração animal - não na alimentação humana.
É bem provável que nesse começo de ano, com a entrada da principal safra de feijão, não haja falta, mas a perspectiva é que, no final do ano, o produto venha a faltar. Se os preços do milho e da soja continuarem mais vantajosos, é óbvio que os capitalistas continuarão privilegiando a sua produção.
No caso do arroz, os estoques de que o Brasil dispõe, que são baixíssimos, mais a perspectiva de safra, já praticamente colhida, momentaneamente não sinalizam para uma situação de falta do produto. Porém, se os preços do mercado internacional estourarem, será iniciado um processo de se destinar parte da produção do mercado interno ao externo.
Temos, portanto, o ‘deus mercado’ determinando todos esses mecanismos nefastos associados a produtos essenciais à nossa segurança alimentar.
CC: Confirmando esses mecanismos, na atual polêmica relativa ao desabastecimento do arroz, onde se discute taxar ou não as exportações de produtores privados, o ministro da Agricultura Reinold Stephanes chegou a negar a medida.
AU: Veja, é por isso que comecei pela causa estrutural. O mercado de alimento não pode sobreviver ao mercado livre. Seguir essa trilha é colocar em risco a possibilidade de sobrevivência da humanidade. O mercado não é capaz de regular nada, exceto as vantagens dos capitalistas. E o problema da fome está aí, para demonstrar essa incapacidade.
No plano do mercado interno brasileiro, desde 1992, o país não aumenta nem a produção de feijão, nem a de arroz e nem a de mandioca, que são os três alimentos básicos da população brasileira. Pode-se pôr o milho aí, mas este não serve só para a alimentação humana, tem também o componente de matéria-prima para a ração.
CC: Ou seja, estamos pensando em produzir etanol sem sequer termos assegurado nossa segurança alimentar.
AU: E como o Brasil tem resolvido, em face da adoção da política neoliberal, o mercado de arroz e feijão? Quando há falta, importa. Então, o país usa a disponibilidade do produto no mercado mundial como instrumento de controle da sua segurança alimentar. Mas, à medida que os países bloqueiam a exportação, não existe mais essa possibilidade, ou seja, o Brasil não teria a chance de buscar no mercado mundial o arroz necessário para manter seus preços elevados no mercado interno.
Esse é o quadro mais crítico do mercado interno. Bom, pode-se questionar por que não se aumenta a produção de arroz, feijão e mandioca. A resposta é que a política agrícola voltada ao alimento básico no Brasil não permite aos agricultores reporem os custos de produção. Quem produz esses alimentos são, em grande maioria, os pequenos agricultores, e eles não têm como resolver o problema da produção, voltando sua atenção a outros produtos. Se pegamos Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande do Sul, todos produtores de feijão, vemos que a tendência é plantar milho, pois possui preços mais vantajosos.
Portanto, o efeito na alimentação brasileira é direto e indireto no que se refere ao mercado dos alimentos básicos. Poder-se-ia colocar nesse bolo a carne. O Brasil está se tornando o maior exportador mundial de tudo quanto é tipo de carne. Conseqüentemente, é claro que, se a produção for destinada ao mercado externo, o interno passa a ser regulado pela disputa de preços. Ou o mercado interno paga preços compatíveis ao mundial, ou se investe em produzir para o mercado mundial.
Pensando ainda no etanol no Brasil: a cana é responsável direta pelo aumento no custo do alimento? Claro que não, mas de forma indireta, sim. Ainda que uma parte da expansão da cultura da cana seja feita em cima de área de pastagem.
CC: Nesse quesito, o físico José Goldemberg chegou a mencionar recentemente que os biocombustíveis estão envoltos em algumas noções falaciosas, já que as lavouras de cana ocupariam apenas 2% dos quase 3 milhões de Km2 utilizados pelo setor agropecuário e, ademais, seriam cultivadas pela conversão de pastagens - e o espaço ocupado por pastos estaria em decréscimo. O que você responderia a isso?
AU: Veja bem. Se tomarmos a área de crescimento da cana neste ano, da penúltima safra para a última, vê-se que, na maioria, não se invadiu a área da produção de alimentos. Mesmo assim, há locais em que isso ocorreu, o que é reconhecido por órgãos do próprio setor sucro-alcooleiro.
A cana, portanto, cresce sim sobre parte das terras que eram destinadas à produção de outros alimentos. E o principal efeito da expansão da cana, esse é o ponto primordial, é o sucessivo. Não se trata necessariamente de um efeito que irá se sentir de forma direta, entre um ano e outro. É um efeito que ao longo dos anos vai se somando. Se compararmos os dados do IBGE da produção agropecuária de 1990 a 2006, considerando-se somente os municípios que tiveram aumento na área plantada de cana e tomando como referência os municípios que cresceram em mais de 500 hectares essa área, o que encontramos? Uma redução de 261 mil hectares de área de feijão. E uma redução de 340 mil hectares de área plantada de arroz.
Desta forma, como a expansão da cana não afeta? Não só o arroz e feijão são afetados, mas também a agropecuária, pois nesses municípios houve uma redução de 460 milhões de litros na produção de leite, por ano. E também uma redução de 4,5 milhões de cabeças de gado bovino.
E aí aparece ainda o efeito perverso do desmatamento: a cana está deslocando a pecuária - assim como a soja no Mato Grosso também a desloca - para o Pará, onde existe hoje o terceiro maior rebanho do país.
CC: No estado de São Paulo, a paisagem se transformou de maneira incrível, só se vêem plantações de cana em longos trechos de suas rodovias.
AU: E para completar, naqueles 261 mil hectares que deixaram de ser plantados com feijão, seria possível produzir 400 mil toneladas do produto, ou seja, 12% da produção nacional. Pode-se dizer que o país não diminuiu essa produção, apenas plantou em outras regiões. É verdade, mas não houve incremento de produção. Seria possível plantar em outras regiões e fazer crescer a produção de feijão no país, mas isso não aconteceu. Quanto ao arroz, nos 340 mil hectares não plantados, poder-se-ia produzir 1 milhão de toneladas do produto, o equivalente a 9% do total do Brasil.
Este é um estudo que estamos ampliando para os demais produtos para mostrar exatamente que não estamos diante de um efeito momentâneo, e sim de uma tendência. Quanto mais se expandir a produção de uma cultura que disputa espaço com outras, naturalmente haverá reflexos nessa produção concorrente.
CC: Ou seja, a se permanecer esse modelo agrícola, as conseqüências podem ser catastróficas.
AU: Só não são catastróficas porque a política agrícola brasileira jogava com o mercado externo e até por isso o governo brasileiro bate forte com essa história dos subsídios da Europa e dos EUA. Querem, a todo custo, que o mundo continue com a política neoliberal. Europa, EUA e Japão estão abandonando a política neoliberal - há vários estudos que mostram esse fato- e o Brasil fica defendendo essa bandeira em nome do agronegócio.
Por outro lado, o que é cruel, não se fez avançar a reforma agrária, sendo que onde ela existe sempre se prioriza a produção de alimentos. Quer dizer, não se estimula a reforma agrária e fica-se nesse impasse da crise que o modelo neoliberal gera.
CC: Portanto, a reforma agrária seria uma das soluções a longo prazo?
AU: É uma solução a curto, médio e longo prazo. O pequeno agricultor produz primeiramente o alimento que precisa para consumo próprio e, automaticamente, ele gera excedentes. Se o Brasil tivesse assentado sua política de produção de alimentos na reforma agrária, hoje o país não estaria vivendo essa situação.
CC: Mas parece que essa possibilidade não se inscreve mais politicamente nesse governo, não?
AU: Não, pelo contrário. O que o governo, parte da mídia e intelectuais passaram a dizer? Que a reforma agrária não era necessária.
CC: Toda a extensa fundamentação que você fez aqui retrata uma crise profundamente estrutural. Mas o estouro dessa crise alimentar agora, em meio à crise hipotecária americana, não seria uma curiosa coincidência?
AU: Eu penso que a crise norte-americana é estrutural. Trata-se de uma crise do setor financeiro e este é o coração do capitalismo na etapa na qual vivemos. É também inegável que uma parte dos fundos investiu em commodities. Não se trata, portanto, de uma ação somente ideológica, onde uma crise vem para encobrir a outra, penso que não é esse o caminho. Há, isto sim, o efeito da crise nessa mudança dos fundos para as commodities.
CC: Mas uma bolha de commodities é então inegável?
AU: Exatamente.
CC: Em meio a toda essa discussão, às vezes surgem declarações como a do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, para quem, em face da crise alimentar, seria necessário ampliar o desmatamento legal. Como você encara uma declaração dessas?
AU: Enxergar no desmatamento a alternativa, num país que tem 120 milhões de hectares de terras comprovadamente improdutivas, registradas no cadastro do Incra, que não faz a reforma agrária porque o governo não quer, somente pode ser encarado como uma loucura do modelo do agronegócio.
Na realidade, há dois centros na produção de grãos. Um é o histórico, no sul. O outro é o Centro-Oeste, a nova área do agronegócio e onde ficam os defensores do desmatamento.
Esse setor do agronegócio situado no Centro-Oeste, que tem no governador Maggi seu representante maior, está acenando com essa alternativa porque, obviamente, na conjuntura atual, o preço da carne também está em alta no mercado mundial. Não compensa fazer a reversão de área de pastagem para a produção de grãos, como em anos anteriores. Então, na verdade, os atuais produtores de grãos estão espremidos entre cumprir a legislação ambiental e expandir sua área de produção. E eu só posso classificar isso como um ato de loucura.
CC: Seria também um ‘ato de loucura’ a declaração do presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, ao dizer que o avanço da pecuária na Amazônia e a derrubada da madeira são conseqüências do baixíssimo valor econômico da floresta? Enquanto isso, ativistas do Greenpeace defendem ‘compensações econômicas pelo não desmatamento’. Há uma relação de causalidade entre esses dois enfoques?
AU: Penso que são dois pontos que devem ser colocados de maneira bem cuidadosa. Em primeiro lugar, a maior parte das terras da Amazônia com floresta está grilada, não pertence a quem quer derrubar ou está derrubando a floresta. Uma parte expressiva dessas terras é propriedade do Incra. Para se ter uma idéia mais exata, são 60 milhões de hectares, que deveriam ser destinados à reforma agrária e não o são porque estão grilados.
Assim, o primeiro ponto que deve ser levantado é o de questionar se essas terras pertencem a quem as cercou. Não pertencem! E o que fez o governo Lula? Baixou a MP 422 para regularizar a grilagem da terra na Amazônia! E isso vai permitir que o grilão, que está lá ocupando a terra, compre até 1500 hectares. Assim sendo, que historia é essa de baixo valor econômico?
Quanto ao Greenpeace, em algumas áreas, as pessoas têm o título de propriedade. Nesse caso, qual é a posição do Greenpeace, e de certo modo a do ministério do Meio Ambiente? Explorar economicamente a floresta, de forma sustentável. Isso é só para quem acredita em papai Noel e que o agronegócio brasileiro, sobretudo esse que grila terra na Amazônia, é capaz de respeitar alguma lei. O Estado na Amazônia está invertido. Quem ocupa o poder nos municípios da região é exatamente quem não cumpre a lei.
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Questões Agrárias
Valéria Nader (colaborou Gabriel Brito)
Em face de mais uma crise mundial que parece explosiva, com a fome e a inflação de alimentos se tornando noticiário nos vários cantos do planeta, conversamos com o professor do departamento de Geografia da USP Ariovaldo Umbelino.
Para Umbelino, a atual situação não deixa a menor margem para diagnósticos ilusionistas: a crise alimentar resultou da total incapacidade do mercado para conduzir à segurança e à soberania alimentar. No Brasil, a ausência de reforma agrária foi também determinante, e a situação é tendencialmente explosiva em função da escalada dos biocombustíveis.
Confira abaixo entrevista exclusiva.
Correio da Cidadania: A que se pode atribuir, pensando globalmente, o atual problema da fome: à formação especulativa de estoques, à queda de safras, à tomada de terras para os cultivos agroindustriais, todos eles comprometendo a produção de alimentos?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, há de se levar em conta que a falta da produção de alimentos na atual conjuntura tem uma série de motivos, que vou tentar enumerar.
Primeiro, o que está em jogo é uma crise estrutural no interior do sistema produtivo que o capitalismo adotou no neoliberalismo, com a mudança da sistemática de controle da produção de alimentos, antes baseada no sistema de estoques e hoje baseada no livre comércio, ou seja, na disponibilidade dos estoques no mercado. Essa mudança está revelando agora suas conseqüências. Portanto, essa é uma primeira razão, e ela é estrutural.
Podemos também lembrar que há uma redução dos estoques em função da ‘subprime’, qual seja, dos problemas no mercado financeiro norte-americano. Uma parte dos fundos se dirigiu à compra de commodities (mercado de futuro), o que acelerou o processo especulativo em função da queda dos estoques e da possibilidade de oferta de alimentos no mercado futuro. Essas são questões estruturais e estão associadas.
A segunda razão é de natureza conjuntural, e deriva do aumento do preço do petróleo. Toda a produção do agronegócio pós-revolução verde, e agora, nesse período do neoliberalismo, está assentada no setor agroquímico, e evidentemente que este é comandado pela lógica do preço do petróleo. Se sobe o preço deste, o custo da agropecuária também sobe e, consequentemente, deriva daí parte da responsabilidade pelo aumento dos preços dos alimentos.
O terceiro motivo, nem por isso de menor importância, pois todos esses são processos simultâneos, está no aumento do consumo devido a uma certa melhoria das condições de algumas populações, sobretudo da China e da Índia, que têm ampliado a importação de alimentos. Mas não é essa a principal razão, como se quer fazer crer no Brasil.
CC: Nesse sentido, fazendo um parêntese para o Brasil, o presidente Lula chegou a declarar que a inflação de alimentos é decorrente de os pobres estarem consumindo mais, e não uma conseqüência da expansão do cultivo do biocombustível. Ao mesmo tempo, aparentemente corroborando a versão presidencial, sabemos que o motor do crescimento nos últimos meses tem sido realmente o aquecimento do mercado interno, em face da deterioração da balança comercial (exportações menos importações). Como você avalia essa situação?
AU: Isso é uma grande bobagem. É evidente que o aumento do consumo é parte da questão, mas não é nem a razão principal, muito menos a única, conforme disse.
CC: Mas voltando, então, aos determinantes da crise alimentar em escala global, você citaria algum outro fator, como, por exemplo, a produção dos biocombustíveis?
AU: Outra causa também conjuntural, que pode vir a se tornar estrutural, é a opção norte-americana pela produção do etanol a partir do milho, bem como o caminho tomado pelos países da União Européia de produzir o etanol a partir de grãos. É claro que essa opção dos EUA, hoje o maior produtor mundial de etanol, fez com que uma parte do milho destinado à alimentação humana e animal fosse destinada à produção de etanol, o que por sua vez gerou os mecanismos especulativos na queda dos estoques de milho. Essa queda, por sua vez, puxou pra cima os preços dos demais grãos: soja, trigo, arroz.
Volto a insistir, essa razão é conjuntural, mas pode vir a se tornar estrutural, porque os EUA não têm mais terras disponíveis à agricultura para ampliar sua produção de milho e continuar mantendo sua produção de trigo e soja. Essas três culturas competem entre si. Portanto, se aumenta a área de uma, diminui a de outra. Além do mais, ampliar a área de cultivo nos EUA sai muito caro, os preços dos alimentos não compensariam. E a essa questão interna dos EUA se soma o aumento do custo de produção, pelo efeito do petróleo.
Esse é, assim, o quadro que se apresenta no plano mundial.
CC: E como esse quadro rebate nos países emergentes, especificamente?
AU: Poderíamos dizer que os primeiros países onde esse rebatimento se deu de forma rápida foram os da Ásia, com a elevação dos preços do arroz, e também os países importadores de trigo. Nesses, o efeito foi imediato, pois, com a elevação do preço do trigo nos EUA, e consequentemente do trigo exportado para outras partes do mundo, os países importadores sentiram imediatamente a alta.
Quanto ao arroz, a elevação de seu preço fez com que os países produtores de arroz do sudeste asiático começassem a bloquear as exportações do produto, assim como agiu a Argentina com relação ao trigo.
Evidentemente que o lado cruel desse processo todo rebaterá na África, cujos povos precisam do trigo para sua alimentação básica, em função do grau de miséria que a região sofre. E aí entra o grito da ONU, pois ela tem seus recursos destinados a fornecer alimento a essa população que sofre com a fome e percebeu que não teria como comprar esses produtos em razão da elevação dos preços.
Mas não só a África sofre, como também a América, como se viu no Haiti.
CC: E o Brasil, como fica nessa conjuntura?
AU: No Brasil, o primeiro efeito aparece no trigo, já que, com o bloqueio das exportações da Argentina, precisamos comprar no mercado mundial, ou seja, nos EUA e Canadá, onde há trigo disponível para exportação. Sendo assim, os preços se elevaram. Não só os preços, pois agora há também o frete, que não existia quando se trazia trigo da Argentina.
Pois bem, o Brasil tem um consumo anual de 10 milhões de toneladas de trigo e produz três milhões, o que nos torna o maior importador mundial de trigo hoje. Sendo assim, inevitavelmente o efeito do trigo terá suas conseqüências no Brasil, não só no pão, mas em todos os produtos nos quais se utiliza trigo.
Somos o único país do mundo em que se prega essa tese maluca do neoliberalismo, de que comida tem de ser oferecida no mercado a quem puder pagar mais, como propõem os economistas neoliberais. Claro que isso tira do país a possibilidade de obter uma mínima segurança alimentar, nem digo soberania.
A lógica do neoliberalismo é essa: manda-se comida a quem paga mais, não a quem tem fome. Nem para o próprio povo do país. A lógica neoliberal não está assentada na segurança, quanto menos na soberania alimentar.
Como parte desse mecanismo, agravando-o ainda mais, vêm os possíveis desdobramentos futuros. O Brasil, com seus três milhões de toneladas produzidas de trigo, vai fazer o quê se a demanda do mercado mundial for superior? Os produtores de trigo vão exportar, como fizeram no ano passado.
Pensando, por exemplo, no feijão, por que chegou a faltar esse produto em nosso mercado, se o Brasil é um grande produtor mundial? Esse foi o reflexo indireto de outros fatores. O aumento, já desde o ano passado, do preço do milho e da soja, assim como o efeito da subida dos preços desses produtos no mercado interno, fez com que as terras destinadas à produção do feijão não o fossem mais. Os capitalistas converteram a área de produção de feijão em terra para cultivo do milho, que tinha preços mais vantajosos no mercado mundial, em função da escalada provocada pelo etanol americano. Escalada que atingiu também a soja, que, na falta do milho, o substitui na ração animal - não na alimentação humana.
É bem provável que nesse começo de ano, com a entrada da principal safra de feijão, não haja falta, mas a perspectiva é que, no final do ano, o produto venha a faltar. Se os preços do milho e da soja continuarem mais vantajosos, é óbvio que os capitalistas continuarão privilegiando a sua produção.
No caso do arroz, os estoques de que o Brasil dispõe, que são baixíssimos, mais a perspectiva de safra, já praticamente colhida, momentaneamente não sinalizam para uma situação de falta do produto. Porém, se os preços do mercado internacional estourarem, será iniciado um processo de se destinar parte da produção do mercado interno ao externo.
Temos, portanto, o ‘deus mercado’ determinando todos esses mecanismos nefastos associados a produtos essenciais à nossa segurança alimentar.
CC: Confirmando esses mecanismos, na atual polêmica relativa ao desabastecimento do arroz, onde se discute taxar ou não as exportações de produtores privados, o ministro da Agricultura Reinold Stephanes chegou a negar a medida.
AU: Veja, é por isso que comecei pela causa estrutural. O mercado de alimento não pode sobreviver ao mercado livre. Seguir essa trilha é colocar em risco a possibilidade de sobrevivência da humanidade. O mercado não é capaz de regular nada, exceto as vantagens dos capitalistas. E o problema da fome está aí, para demonstrar essa incapacidade.
No plano do mercado interno brasileiro, desde 1992, o país não aumenta nem a produção de feijão, nem a de arroz e nem a de mandioca, que são os três alimentos básicos da população brasileira. Pode-se pôr o milho aí, mas este não serve só para a alimentação humana, tem também o componente de matéria-prima para a ração.
CC: Ou seja, estamos pensando em produzir etanol sem sequer termos assegurado nossa segurança alimentar.
AU: E como o Brasil tem resolvido, em face da adoção da política neoliberal, o mercado de arroz e feijão? Quando há falta, importa. Então, o país usa a disponibilidade do produto no mercado mundial como instrumento de controle da sua segurança alimentar. Mas, à medida que os países bloqueiam a exportação, não existe mais essa possibilidade, ou seja, o Brasil não teria a chance de buscar no mercado mundial o arroz necessário para manter seus preços elevados no mercado interno.
Esse é o quadro mais crítico do mercado interno. Bom, pode-se questionar por que não se aumenta a produção de arroz, feijão e mandioca. A resposta é que a política agrícola voltada ao alimento básico no Brasil não permite aos agricultores reporem os custos de produção. Quem produz esses alimentos são, em grande maioria, os pequenos agricultores, e eles não têm como resolver o problema da produção, voltando sua atenção a outros produtos. Se pegamos Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande do Sul, todos produtores de feijão, vemos que a tendência é plantar milho, pois possui preços mais vantajosos.
Portanto, o efeito na alimentação brasileira é direto e indireto no que se refere ao mercado dos alimentos básicos. Poder-se-ia colocar nesse bolo a carne. O Brasil está se tornando o maior exportador mundial de tudo quanto é tipo de carne. Conseqüentemente, é claro que, se a produção for destinada ao mercado externo, o interno passa a ser regulado pela disputa de preços. Ou o mercado interno paga preços compatíveis ao mundial, ou se investe em produzir para o mercado mundial.
Pensando ainda no etanol no Brasil: a cana é responsável direta pelo aumento no custo do alimento? Claro que não, mas de forma indireta, sim. Ainda que uma parte da expansão da cultura da cana seja feita em cima de área de pastagem.
CC: Nesse quesito, o físico José Goldemberg chegou a mencionar recentemente que os biocombustíveis estão envoltos em algumas noções falaciosas, já que as lavouras de cana ocupariam apenas 2% dos quase 3 milhões de Km2 utilizados pelo setor agropecuário e, ademais, seriam cultivadas pela conversão de pastagens - e o espaço ocupado por pastos estaria em decréscimo. O que você responderia a isso?
AU: Veja bem. Se tomarmos a área de crescimento da cana neste ano, da penúltima safra para a última, vê-se que, na maioria, não se invadiu a área da produção de alimentos. Mesmo assim, há locais em que isso ocorreu, o que é reconhecido por órgãos do próprio setor sucro-alcooleiro.
A cana, portanto, cresce sim sobre parte das terras que eram destinadas à produção de outros alimentos. E o principal efeito da expansão da cana, esse é o ponto primordial, é o sucessivo. Não se trata necessariamente de um efeito que irá se sentir de forma direta, entre um ano e outro. É um efeito que ao longo dos anos vai se somando. Se compararmos os dados do IBGE da produção agropecuária de 1990 a 2006, considerando-se somente os municípios que tiveram aumento na área plantada de cana e tomando como referência os municípios que cresceram em mais de 500 hectares essa área, o que encontramos? Uma redução de 261 mil hectares de área de feijão. E uma redução de 340 mil hectares de área plantada de arroz.
Desta forma, como a expansão da cana não afeta? Não só o arroz e feijão são afetados, mas também a agropecuária, pois nesses municípios houve uma redução de 460 milhões de litros na produção de leite, por ano. E também uma redução de 4,5 milhões de cabeças de gado bovino.
E aí aparece ainda o efeito perverso do desmatamento: a cana está deslocando a pecuária - assim como a soja no Mato Grosso também a desloca - para o Pará, onde existe hoje o terceiro maior rebanho do país.
CC: No estado de São Paulo, a paisagem se transformou de maneira incrível, só se vêem plantações de cana em longos trechos de suas rodovias.
AU: E para completar, naqueles 261 mil hectares que deixaram de ser plantados com feijão, seria possível produzir 400 mil toneladas do produto, ou seja, 12% da produção nacional. Pode-se dizer que o país não diminuiu essa produção, apenas plantou em outras regiões. É verdade, mas não houve incremento de produção. Seria possível plantar em outras regiões e fazer crescer a produção de feijão no país, mas isso não aconteceu. Quanto ao arroz, nos 340 mil hectares não plantados, poder-se-ia produzir 1 milhão de toneladas do produto, o equivalente a 9% do total do Brasil.
Este é um estudo que estamos ampliando para os demais produtos para mostrar exatamente que não estamos diante de um efeito momentâneo, e sim de uma tendência. Quanto mais se expandir a produção de uma cultura que disputa espaço com outras, naturalmente haverá reflexos nessa produção concorrente.
CC: Ou seja, a se permanecer esse modelo agrícola, as conseqüências podem ser catastróficas.
AU: Só não são catastróficas porque a política agrícola brasileira jogava com o mercado externo e até por isso o governo brasileiro bate forte com essa história dos subsídios da Europa e dos EUA. Querem, a todo custo, que o mundo continue com a política neoliberal. Europa, EUA e Japão estão abandonando a política neoliberal - há vários estudos que mostram esse fato- e o Brasil fica defendendo essa bandeira em nome do agronegócio.
Por outro lado, o que é cruel, não se fez avançar a reforma agrária, sendo que onde ela existe sempre se prioriza a produção de alimentos. Quer dizer, não se estimula a reforma agrária e fica-se nesse impasse da crise que o modelo neoliberal gera.
CC: Portanto, a reforma agrária seria uma das soluções a longo prazo?
AU: É uma solução a curto, médio e longo prazo. O pequeno agricultor produz primeiramente o alimento que precisa para consumo próprio e, automaticamente, ele gera excedentes. Se o Brasil tivesse assentado sua política de produção de alimentos na reforma agrária, hoje o país não estaria vivendo essa situação.
CC: Mas parece que essa possibilidade não se inscreve mais politicamente nesse governo, não?
AU: Não, pelo contrário. O que o governo, parte da mídia e intelectuais passaram a dizer? Que a reforma agrária não era necessária.
CC: Toda a extensa fundamentação que você fez aqui retrata uma crise profundamente estrutural. Mas o estouro dessa crise alimentar agora, em meio à crise hipotecária americana, não seria uma curiosa coincidência?
AU: Eu penso que a crise norte-americana é estrutural. Trata-se de uma crise do setor financeiro e este é o coração do capitalismo na etapa na qual vivemos. É também inegável que uma parte dos fundos investiu em commodities. Não se trata, portanto, de uma ação somente ideológica, onde uma crise vem para encobrir a outra, penso que não é esse o caminho. Há, isto sim, o efeito da crise nessa mudança dos fundos para as commodities.
CC: Mas uma bolha de commodities é então inegável?
AU: Exatamente.
CC: Em meio a toda essa discussão, às vezes surgem declarações como a do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, para quem, em face da crise alimentar, seria necessário ampliar o desmatamento legal. Como você encara uma declaração dessas?
AU: Enxergar no desmatamento a alternativa, num país que tem 120 milhões de hectares de terras comprovadamente improdutivas, registradas no cadastro do Incra, que não faz a reforma agrária porque o governo não quer, somente pode ser encarado como uma loucura do modelo do agronegócio.
Na realidade, há dois centros na produção de grãos. Um é o histórico, no sul. O outro é o Centro-Oeste, a nova área do agronegócio e onde ficam os defensores do desmatamento.
Esse setor do agronegócio situado no Centro-Oeste, que tem no governador Maggi seu representante maior, está acenando com essa alternativa porque, obviamente, na conjuntura atual, o preço da carne também está em alta no mercado mundial. Não compensa fazer a reversão de área de pastagem para a produção de grãos, como em anos anteriores. Então, na verdade, os atuais produtores de grãos estão espremidos entre cumprir a legislação ambiental e expandir sua área de produção. E eu só posso classificar isso como um ato de loucura.
CC: Seria também um ‘ato de loucura’ a declaração do presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, ao dizer que o avanço da pecuária na Amazônia e a derrubada da madeira são conseqüências do baixíssimo valor econômico da floresta? Enquanto isso, ativistas do Greenpeace defendem ‘compensações econômicas pelo não desmatamento’. Há uma relação de causalidade entre esses dois enfoques?
AU: Penso que são dois pontos que devem ser colocados de maneira bem cuidadosa. Em primeiro lugar, a maior parte das terras da Amazônia com floresta está grilada, não pertence a quem quer derrubar ou está derrubando a floresta. Uma parte expressiva dessas terras é propriedade do Incra. Para se ter uma idéia mais exata, são 60 milhões de hectares, que deveriam ser destinados à reforma agrária e não o são porque estão grilados.
Assim, o primeiro ponto que deve ser levantado é o de questionar se essas terras pertencem a quem as cercou. Não pertencem! E o que fez o governo Lula? Baixou a MP 422 para regularizar a grilagem da terra na Amazônia! E isso vai permitir que o grilão, que está lá ocupando a terra, compre até 1500 hectares. Assim sendo, que historia é essa de baixo valor econômico?
Quanto ao Greenpeace, em algumas áreas, as pessoas têm o título de propriedade. Nesse caso, qual é a posição do Greenpeace, e de certo modo a do ministério do Meio Ambiente? Explorar economicamente a floresta, de forma sustentável. Isso é só para quem acredita em papai Noel e que o agronegócio brasileiro, sobretudo esse que grila terra na Amazônia, é capaz de respeitar alguma lei. O Estado na Amazônia está invertido. Quem ocupa o poder nos municípios da região é exatamente quem não cumpre a lei.
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quarta-feira, 1 de outubro de 2008
O combate do G8 a fome, ao aumento dos preços do petróleo e à inflação
30 de Setembro de 2008
Rüdiger Falksohn e Wolfgang Reuter
Os preços de energia e alimentos parecem estar aumentando diariamente e com eles a inflação. Com um novo relatório de estratégia, a chanceler alemã Angela Merkel espera encontrar um caminho para a crise tríplice no encontro de cúpula do G8 (grupo dos países mais industrializados mais a Rússia), nesta semana no Japão.
No que se refere a bilionários, Richard Rainwater, 65 anos, do Texas, é bastante comum. Seus ativos estão avaliados em cerca de US$ 3 bilhões, o que o coloca na faixa intermediária dos americanos super-ricos.
Um matemático por formação acadêmica, Rainwater é um visionário - famoso por ser o “caubói do capitalismo dos anos 90″, porque há 11 anos ele vendeu ações lucrativas de diversas empresas e, juntamente com outros, investiu US$ 300 milhões adicionais em empresas do mercado de energia que estava em dificuldades na época. O estouro da bolha pontocom de Internet e a recente crise imobiliária pouco o afetaram, e sua empresa, a Rainwater, recentemente anunciou com satisfação um lucro de US$ 2 bilhões.
Em 1997, um barril de petróleo cru custava apenas US$ 20. De lá para cá o preço explodiu e atualmente se encontra em US$ 144 no mercado global. Mas olhando à frente, Rainwater vendeu seus interesses em petróleo quando o preço atingiu US$ 129 e a empresa está, pelo menos por ora, evitando o petróleo. Rainwater vê a atividade turbulenta nas bolsas de commodities como um observador distante e surpreendentemente até a critica. Se as coisas prosseguirem como estão, ele disse recentemente à revista “Forbes”, a sobrevivência da humanidade poderá estar em risco.
O mundo já foi abalado por três crises financeiras recentes. Como resultado do colapso imobiliário nos Estados Unidos, bancos e seguradoras de todo o mundo foram atingidos. Além disso, os preços dos bens mais importantes do mundo estão em alta - tanto para fontes de energia quanto para alimentação. E quanto mais caros ficam os commodities, mais eles aceleram o processo de inflação global.
Inevitavelmente, o Terceiro Mundo e os países emergentes estão sendo arrastados por estas crises. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) transformaram a abertura de seus mercados internos para capital e produtos ocidentais - incluindo alimentos e bens de consumo - em uma pré-condição para obtenção de empréstimos. E agora isto.
No Vietnã, apenas recentemente considerada uma economia tigre asiática, a taxa de inflação já está em 25%. Em junho, a população teve que gastar 75% mais em alimentos do que há apenas um ano. Trabalhadores estão fazendo greve por aumentos salariais em muitas partes do país.
Os preços do diesel em Bangladesh aumentaram em um terço, para cerca de US$ 0,80 por litro; o preço do gás natural aumentou dois terços. Dos 145 milhões de habitantes do país, 58 milhões precisam viver ganhando menos de US$ 1 por dia.
Na Tailândia, manifestantes bloquearam as ruas por causa da desvalorização do baht, que está dolorosamente inflacionando os preços dos importados. Crescem os temores de uma nova crise asiática.
Na Índia, os protestos estão se tornando mais freqüentes. Linhas de trem estão sendo bloqueadas. Escolas estão sendo fechadas. E, na semana passada, milhões de caminhoneiros entraram em grave após o governo em Nova Déli ter reduzido os subsídios aos combustíveis, uma nova política que afeta não apenas os preços do diesel, mas também o do óleo de cozinha.
A Índia, uma potência econômica em rápido crescimento, está enfrentando uma taxa de inflação de 11,6%. No Paquistão, o índice é de 19,3%, 20,2% no Irã, e Rússia, Sérvia e Bulgária estão registrando índices de cerca de 15%. Em 50 outros países, o índice é superior a 10%.
Se a Alemanha, por exemplo, experimentasse uma queda de 30% no poder aquisitivo como vista atualmente na Etiópia ou Venezuela, isto significaria que aqueles que recebem o mais alto benefício desemprego do país, atualmente de 378 euros (US$ 594) por mês, veriam seu poder de compra reduzido para 264 euros em um ano.
Toda a atenção agora está concentrada na ilha de Hokkaido no Japão. A partir de segunda-feira, os líderes dos países do G8 se reunirão na cidade de Toyako para discutir uma série de questões que dificilmente poderiam ser mais complicadas. Como, por exemplo, é possível reprimir o poder destrutivo potencial de uma economia globalizada? O sistema capitalista está seguindo para um colapso? E como resgatar o mundo desta crise tripla - e com que meios?
Surpreendentemente, os oito maiores países industrializados do mundo inicialmente nem queriam colocar estas questões no centro de sua agenda. O primeiro-ministro do Japão, Yasuo Fukuda, 71 anos, carecia de coragem ou talvez de poder para colocar a questão da crise tripla na agenda. Em vez disso ele se concentrou na mudança climática e na África, as mesmas questões adotadas por sua antecessora, a chanceler Angela Merkel da Alemanha, que foi a anfitriã da última conferência do G-8 em Heiligendamm, na costa do Mar Báltico, em 2007.
Mas, em abril, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, escreveu aos japoneses e pediu para que a situação mundial dos alimentos fosse discutida no encontro. Merkel também reconheceu a necessidade de ação. Discretamente, eles convocaram um grupo de trabalho interministerial. Na última segunda-feira, eles informaram as conclusões a Fukuda, o presidente do G8, assim como aos chefes de Estado e governos dos demais países membros.
A “Spiegel” obteve uma cópia da carta de seis páginas, que trata dos problemas fundamentais com a seriedade adequada e agora guiará a discussão do G8.
O aumento dos preços terá “conseqüências sérias para a segurança e oferta de alimentos para famílias pobres e carentes, tanto nas áreas urbanas quanto rurais, dos países em desenvolvimento”, ela declara. A escassez de alimentos e conflitos em torno do controle e acesso aos recursos naturais poderia “colocar em risco a democratização, desestabilizar Estados e se transformar em problemas de segurança internacional”.
Além do “crescimento demográfico e econômico” e da “mudança dos hábitos de consumo” no Terceiro Mundo, os autores também atribuem à crescente produção agrícola destinada aos combustíveis como culpada pela explosão de preços. Finalmente, a desvalorização do dólar e a especulação no mercado de futuros também têm influência significativa sobre e nível e flutuações nos preços dos alimentos.
Os conselheiros de Merkel presumem que os preços dos grãos, arroz e sementes oleaginosas se tornarão um pouco menos caros, mas não muito. Ao mesmo tempo, eles esperam flutuações de preço ainda maiores. No relatório de orientação para o G8, eles recomendam:
- um aumento da produtividade agrícola - principalmente nos países em desenvolvimento, onde esta representa, em média, 1% do setor;
- garantias para que os mais duramente atingidos tenham acesso aos alimentos e ajuda financeira;
- que sementes, adubo e equipamentos agrícolas sejam fornecidos rapidamente (de preferência para Estados que façam “bom uso” desta ajuda e de forma responsável);
- a suspensão imediata de restrições de exportação em, por exemplo, países como a Índia.
O governo alemão acredita que os 30 países mais pobres do mundo precisam de US$ 20 bilhões adicionais para importação de alimentos para compensar a oferta insuficiente -um fato que agravaria enormemente seus déficits atuais. O governo de Merkel deseja que o FMI assegure que estes Estados permaneçam solventes. Visando lidar com a “natureza dramática” da crise, a produção global de alimentos também deve ser aumentada -especialmente nos países mais pobres do mundo. O governo alemão argumenta que seria prudente para os países ricos investir na agricultura destes países.
Apenas neste ano, anunciou Merkel, a Alemanha disponibilizará US$ 750 milhões para ajudar a garantir a oferta de alimentos a estes países. Em Toyako, ela deverá pressionar pela criação de uma força-tarefa agrícola na esfera da ONU assim como de um plano para ação adicional.
As propostas de Berlim não são novas nem revolucionárias. Todavia, elas representam as formas como os principais países industrializados estão buscando lidar com estes grandes problemas.
Assim como há um ano em Heiligendamm, a chanceler alemã Merkel também está estabelecendo o tom neste encontro do G8. Mas será que o clube será capaz de tomar as medidas apropriadas? Afinal, a fome é apenas um aspecto deste problema triplo.
A meta é desfazer o nó cego, preferivelmente sem violência. É necessária a adoção de uma posição dura em relação aos fundos hedge, que vem se enriquecendo de forma imprudente; os mercados precisam ser ajustados e regulados. Mas que regras devem ser aplicadas? E que mecanismos de supervisão podem ser justificados sem espalhar ainda mais os estragos?
O fato, por exemplo, de bilhões de chineses estarem comendo mais carne e consumindo mais gasolina do que antes e de que a demanda está crescendo é resultado de um tremendo crescimento econômico. O Império do Centro permitiu o ingresso de investidores em seu país e a qualidade de vida está aumentando - um verdadeiro exemplo para livros educativos. A milésima loja do McDonald’s na China em breve erguerá seus arcos dourados para prazer da sede da empresa americana em Illinois.
Ainda assim, o recente boom em investimento e consumo em Pequim e Xangai recentemente foi identificado como sendo uma das causas do crescente desequilíbrio global. Um motivo é a China estar se tornado uma concorrente formidável na disputa por recursos finitos como petróleo cru. O fato do país também estar diariamente eliminando terras agrícolas para abrir caminho para a indústria também é visto como sendo algo crítico, pois contribui tanto para a redução de suas próprias terras aráveis quanto das áreas agrícolas globais, de forma que a China agora precisa importar milho, soja e trigo.
De fato, a longa marcha da China de um país agrícola para a potência industrial que é atualmente está começando a mostrar seu lado sombrio. Este desenvolvimento industrial, antes tão elogiado, agora deve ser condenado?
Visando manter economias importantes nos trilhos, medidas completamente contraditórias estão sendo realizadas a curto prazo. O Federal Reserve (o banco central americano) em Washington, por exemplo, está reduzindo sua taxa de juros referencial visando estimular a economia americana. Ao fazê-lo, ele está disposto a aceitar a inflação que vem com isso. Ao mesmo tempo, o Banco Central Europeu faz o oposto - elevando as taxas de juros na última quinta-feira para 4,25% visando controlar a inflação (atualmente em 4% na zona do euro).
Enquanto isso, o FMI está pedindo por controles mais rigorosos do mercado financeiro, mais relatórios bancários detalhados e melhor gestão de risco nas instituições financeiras e agências de classificação. O diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn acredita que “a necessidade de uma intervenção pública está cada vez mais evidente”.
Por sua vez, como o mundo soube na sexta-feira, o Banco Mundial está desde abril de posse de um relatório que conclui que a agricultura de plantas usadas para biocombustíveis teve um impacto muito maior sobre os preços dos alimentos do que previamente se imaginava. Mas o relatório foi mantido em sigilo em deferência ao governo americano, que vem apontando o aumento da demanda por alimentos na China e Índia como causa do aumento dos preços, não a demanda por biocombustíveis nos postos americanos e europeus.
A grande maioria dos especialistas está, no mínimo, unida em sua crença de que os tempos de boom chegaram ao fim e que as rédeas precisam ser puxadas, especialmente entre os especuladores. Os governos terão que assumir de novo um papel mais forte no controle dos mercados. Agora cabe aos representantes do G8 a responsabilidade de chegar a conclusões razoáveis e tomar decisões razoáveis com base no relatório de Merkel e outras análises.
“Der Spiegel”
Extraído do Blog Controvérsia, em 1/10/2008
Rüdiger Falksohn e Wolfgang Reuter
Os preços de energia e alimentos parecem estar aumentando diariamente e com eles a inflação. Com um novo relatório de estratégia, a chanceler alemã Angela Merkel espera encontrar um caminho para a crise tríplice no encontro de cúpula do G8 (grupo dos países mais industrializados mais a Rússia), nesta semana no Japão.
No que se refere a bilionários, Richard Rainwater, 65 anos, do Texas, é bastante comum. Seus ativos estão avaliados em cerca de US$ 3 bilhões, o que o coloca na faixa intermediária dos americanos super-ricos.
Um matemático por formação acadêmica, Rainwater é um visionário - famoso por ser o “caubói do capitalismo dos anos 90″, porque há 11 anos ele vendeu ações lucrativas de diversas empresas e, juntamente com outros, investiu US$ 300 milhões adicionais em empresas do mercado de energia que estava em dificuldades na época. O estouro da bolha pontocom de Internet e a recente crise imobiliária pouco o afetaram, e sua empresa, a Rainwater, recentemente anunciou com satisfação um lucro de US$ 2 bilhões.
Em 1997, um barril de petróleo cru custava apenas US$ 20. De lá para cá o preço explodiu e atualmente se encontra em US$ 144 no mercado global. Mas olhando à frente, Rainwater vendeu seus interesses em petróleo quando o preço atingiu US$ 129 e a empresa está, pelo menos por ora, evitando o petróleo. Rainwater vê a atividade turbulenta nas bolsas de commodities como um observador distante e surpreendentemente até a critica. Se as coisas prosseguirem como estão, ele disse recentemente à revista “Forbes”, a sobrevivência da humanidade poderá estar em risco.
O mundo já foi abalado por três crises financeiras recentes. Como resultado do colapso imobiliário nos Estados Unidos, bancos e seguradoras de todo o mundo foram atingidos. Além disso, os preços dos bens mais importantes do mundo estão em alta - tanto para fontes de energia quanto para alimentação. E quanto mais caros ficam os commodities, mais eles aceleram o processo de inflação global.
Inevitavelmente, o Terceiro Mundo e os países emergentes estão sendo arrastados por estas crises. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) transformaram a abertura de seus mercados internos para capital e produtos ocidentais - incluindo alimentos e bens de consumo - em uma pré-condição para obtenção de empréstimos. E agora isto.
No Vietnã, apenas recentemente considerada uma economia tigre asiática, a taxa de inflação já está em 25%. Em junho, a população teve que gastar 75% mais em alimentos do que há apenas um ano. Trabalhadores estão fazendo greve por aumentos salariais em muitas partes do país.
Os preços do diesel em Bangladesh aumentaram em um terço, para cerca de US$ 0,80 por litro; o preço do gás natural aumentou dois terços. Dos 145 milhões de habitantes do país, 58 milhões precisam viver ganhando menos de US$ 1 por dia.
Na Tailândia, manifestantes bloquearam as ruas por causa da desvalorização do baht, que está dolorosamente inflacionando os preços dos importados. Crescem os temores de uma nova crise asiática.
Na Índia, os protestos estão se tornando mais freqüentes. Linhas de trem estão sendo bloqueadas. Escolas estão sendo fechadas. E, na semana passada, milhões de caminhoneiros entraram em grave após o governo em Nova Déli ter reduzido os subsídios aos combustíveis, uma nova política que afeta não apenas os preços do diesel, mas também o do óleo de cozinha.
A Índia, uma potência econômica em rápido crescimento, está enfrentando uma taxa de inflação de 11,6%. No Paquistão, o índice é de 19,3%, 20,2% no Irã, e Rússia, Sérvia e Bulgária estão registrando índices de cerca de 15%. Em 50 outros países, o índice é superior a 10%.
Se a Alemanha, por exemplo, experimentasse uma queda de 30% no poder aquisitivo como vista atualmente na Etiópia ou Venezuela, isto significaria que aqueles que recebem o mais alto benefício desemprego do país, atualmente de 378 euros (US$ 594) por mês, veriam seu poder de compra reduzido para 264 euros em um ano.
Toda a atenção agora está concentrada na ilha de Hokkaido no Japão. A partir de segunda-feira, os líderes dos países do G8 se reunirão na cidade de Toyako para discutir uma série de questões que dificilmente poderiam ser mais complicadas. Como, por exemplo, é possível reprimir o poder destrutivo potencial de uma economia globalizada? O sistema capitalista está seguindo para um colapso? E como resgatar o mundo desta crise tripla - e com que meios?
Surpreendentemente, os oito maiores países industrializados do mundo inicialmente nem queriam colocar estas questões no centro de sua agenda. O primeiro-ministro do Japão, Yasuo Fukuda, 71 anos, carecia de coragem ou talvez de poder para colocar a questão da crise tripla na agenda. Em vez disso ele se concentrou na mudança climática e na África, as mesmas questões adotadas por sua antecessora, a chanceler Angela Merkel da Alemanha, que foi a anfitriã da última conferência do G-8 em Heiligendamm, na costa do Mar Báltico, em 2007.
Mas, em abril, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, escreveu aos japoneses e pediu para que a situação mundial dos alimentos fosse discutida no encontro. Merkel também reconheceu a necessidade de ação. Discretamente, eles convocaram um grupo de trabalho interministerial. Na última segunda-feira, eles informaram as conclusões a Fukuda, o presidente do G8, assim como aos chefes de Estado e governos dos demais países membros.
A “Spiegel” obteve uma cópia da carta de seis páginas, que trata dos problemas fundamentais com a seriedade adequada e agora guiará a discussão do G8.
O aumento dos preços terá “conseqüências sérias para a segurança e oferta de alimentos para famílias pobres e carentes, tanto nas áreas urbanas quanto rurais, dos países em desenvolvimento”, ela declara. A escassez de alimentos e conflitos em torno do controle e acesso aos recursos naturais poderia “colocar em risco a democratização, desestabilizar Estados e se transformar em problemas de segurança internacional”.
Além do “crescimento demográfico e econômico” e da “mudança dos hábitos de consumo” no Terceiro Mundo, os autores também atribuem à crescente produção agrícola destinada aos combustíveis como culpada pela explosão de preços. Finalmente, a desvalorização do dólar e a especulação no mercado de futuros também têm influência significativa sobre e nível e flutuações nos preços dos alimentos.
Os conselheiros de Merkel presumem que os preços dos grãos, arroz e sementes oleaginosas se tornarão um pouco menos caros, mas não muito. Ao mesmo tempo, eles esperam flutuações de preço ainda maiores. No relatório de orientação para o G8, eles recomendam:
- um aumento da produtividade agrícola - principalmente nos países em desenvolvimento, onde esta representa, em média, 1% do setor;
- garantias para que os mais duramente atingidos tenham acesso aos alimentos e ajuda financeira;
- que sementes, adubo e equipamentos agrícolas sejam fornecidos rapidamente (de preferência para Estados que façam “bom uso” desta ajuda e de forma responsável);
- a suspensão imediata de restrições de exportação em, por exemplo, países como a Índia.
O governo alemão acredita que os 30 países mais pobres do mundo precisam de US$ 20 bilhões adicionais para importação de alimentos para compensar a oferta insuficiente -um fato que agravaria enormemente seus déficits atuais. O governo de Merkel deseja que o FMI assegure que estes Estados permaneçam solventes. Visando lidar com a “natureza dramática” da crise, a produção global de alimentos também deve ser aumentada -especialmente nos países mais pobres do mundo. O governo alemão argumenta que seria prudente para os países ricos investir na agricultura destes países.
Apenas neste ano, anunciou Merkel, a Alemanha disponibilizará US$ 750 milhões para ajudar a garantir a oferta de alimentos a estes países. Em Toyako, ela deverá pressionar pela criação de uma força-tarefa agrícola na esfera da ONU assim como de um plano para ação adicional.
As propostas de Berlim não são novas nem revolucionárias. Todavia, elas representam as formas como os principais países industrializados estão buscando lidar com estes grandes problemas.
Assim como há um ano em Heiligendamm, a chanceler alemã Merkel também está estabelecendo o tom neste encontro do G8. Mas será que o clube será capaz de tomar as medidas apropriadas? Afinal, a fome é apenas um aspecto deste problema triplo.
A meta é desfazer o nó cego, preferivelmente sem violência. É necessária a adoção de uma posição dura em relação aos fundos hedge, que vem se enriquecendo de forma imprudente; os mercados precisam ser ajustados e regulados. Mas que regras devem ser aplicadas? E que mecanismos de supervisão podem ser justificados sem espalhar ainda mais os estragos?
O fato, por exemplo, de bilhões de chineses estarem comendo mais carne e consumindo mais gasolina do que antes e de que a demanda está crescendo é resultado de um tremendo crescimento econômico. O Império do Centro permitiu o ingresso de investidores em seu país e a qualidade de vida está aumentando - um verdadeiro exemplo para livros educativos. A milésima loja do McDonald’s na China em breve erguerá seus arcos dourados para prazer da sede da empresa americana em Illinois.
Ainda assim, o recente boom em investimento e consumo em Pequim e Xangai recentemente foi identificado como sendo uma das causas do crescente desequilíbrio global. Um motivo é a China estar se tornado uma concorrente formidável na disputa por recursos finitos como petróleo cru. O fato do país também estar diariamente eliminando terras agrícolas para abrir caminho para a indústria também é visto como sendo algo crítico, pois contribui tanto para a redução de suas próprias terras aráveis quanto das áreas agrícolas globais, de forma que a China agora precisa importar milho, soja e trigo.
De fato, a longa marcha da China de um país agrícola para a potência industrial que é atualmente está começando a mostrar seu lado sombrio. Este desenvolvimento industrial, antes tão elogiado, agora deve ser condenado?
Visando manter economias importantes nos trilhos, medidas completamente contraditórias estão sendo realizadas a curto prazo. O Federal Reserve (o banco central americano) em Washington, por exemplo, está reduzindo sua taxa de juros referencial visando estimular a economia americana. Ao fazê-lo, ele está disposto a aceitar a inflação que vem com isso. Ao mesmo tempo, o Banco Central Europeu faz o oposto - elevando as taxas de juros na última quinta-feira para 4,25% visando controlar a inflação (atualmente em 4% na zona do euro).
Enquanto isso, o FMI está pedindo por controles mais rigorosos do mercado financeiro, mais relatórios bancários detalhados e melhor gestão de risco nas instituições financeiras e agências de classificação. O diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn acredita que “a necessidade de uma intervenção pública está cada vez mais evidente”.
Por sua vez, como o mundo soube na sexta-feira, o Banco Mundial está desde abril de posse de um relatório que conclui que a agricultura de plantas usadas para biocombustíveis teve um impacto muito maior sobre os preços dos alimentos do que previamente se imaginava. Mas o relatório foi mantido em sigilo em deferência ao governo americano, que vem apontando o aumento da demanda por alimentos na China e Índia como causa do aumento dos preços, não a demanda por biocombustíveis nos postos americanos e europeus.
A grande maioria dos especialistas está, no mínimo, unida em sua crença de que os tempos de boom chegaram ao fim e que as rédeas precisam ser puxadas, especialmente entre os especuladores. Os governos terão que assumir de novo um papel mais forte no controle dos mercados. Agora cabe aos representantes do G8 a responsabilidade de chegar a conclusões razoáveis e tomar decisões razoáveis com base no relatório de Merkel e outras análises.
“Der Spiegel”
Extraído do Blog Controvérsia, em 1/10/2008
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Da fogueira ao fast food
28/09/08
Texto Tarso Araújo
As plantas e animais que comemos existiam antes mesmo de o homem abandonar o visual de macaco. De lá pra cá, o que mudou é como obtemos e preparamos as refeições. A história da comida evoluiu, dentada a dentada, junto com nosso poder de transformar o mundo
Antiguidade - 7 000 A.C.
Carnes - Carneiro / Há cerca de 10 mil anos, nômades desenvolveram a pecuária. E o carneiro, fonte de carne, leite e lã, era um dos animais mais úteis aos primeiros pastores da humanidade.
Cereais - Trigo / A agricultura nos deu grãos em quantidade. Para se transformarem em alimento, eram cozidos ou empapados. Também iam ao forno, de onde saíam em forma de pão.
Frutas e Legumes - Maçã / Frutas eram fontes valiosas de açúcar – e a maçã foi das primeiras a ser plantadas. Sempre ligada à sensualidade, seu gosto doce virou símbolo de pecado.
Bebidas - Cerveja / A fermentação foi descoberta ao mesmo tempo que a agricultura. Da cevada fazia-se a cerveja, mais popular que a água por não trazer riscos de contaminação.
Temperos - Sal / Antes mesmo de colocar o animal na cerca, o homem aprendeu que o sal, obtido em salmouras naturais, conservava a carne da caça.
Era clássica - Séc. 4 A.C.
Carnes - Porco / No século 3, era o item mais importante da “cesta básica” que Roma dava aos cidadãos. A gordura servia para temperar. No prato, a preferência era para as tetas e a vulva da porca.
Cereais - Macarrão / Povos do Mediterrâneo misturavam farinha e água para fazer o macco. Na Sicília, a massa passou a ser seca, cortada e cozida. Ganhou o nome de maccaruni – isso bem antes de Marco Polo existir.
Frutas e Legumes - Azeitona / Os gregos usavam o óleo para comer e tomar banho. Durante suas campanhas Alexandre, o Grande, difundiu o uso do azeite. Depois, lucrou pesado com as exportações.
Bebidas - Água / Roma inovou ao distribuí-la por chafarizes e aquedutos. Como a qualidade era duvidosa, os romanos preferiam a calda, fervida e vendida em tavernas, e a posca, desinfetada com vinagre.
Temperos - Mel / Primeiro adoçante conhecido pelo homem, era exclusividade dos banquetes reais na Mesopotâmia. Mas os gregos o fizeram parte da refeição comum, servido com queijo e pão.
Idade média - Séc. 6
Carnes - Boi / Agradeça a existência da picanha à invenção do arado de rodas. Antes dele, o boi era mais caro à agricultura do que ao prato - em Roma, o bovicídio e homicídio era punidos com a mesma pena.
Cereais - Aveia / Popularizou-se na crise demográfica da Europa, no século 13, quando o lema era aproveitar ao máximo a terra. Cultivada na entressafra do trigo, alimentava bois que depois alimentavam homens.
Frutas e Legumes - Melancia / Como a berinjela, foi apresentada ao Ocidente pelo árabes que ocuparam a Europa entre os séculos 7 e 15. Seu suco refrescante fez sucesso instantâneo.
Bebidas - Vinho / Vinhos de frutas eram feitos desde a Antiguidade. Mas bastou a versão de uva aparecer nos relatos da Santa Ceia para ela ganhar status mundial como a mais nobre entre as bebidas.
Temperos - Açafrão / A dificuldade de plantar especiarias no frio da Europa nutriu séculos de comércio com o Oriente. Rara exceção, o açafrão foi adaptado pelos árabes ao clima da península Ibérica.
Navegações - Séc. 15
Carnes - Peru / Para quem comia até garça nos castelos medievais, a descoberta dessa ave carnuda foi motivo de festa. Vindo do Novo Mundo, foi uma das últimas aves a se difundirem como alimento no planeta.
Cereais - Milho / O grão que era pilar da alimentação na América caiu no gosto de camponeses europeus com pouca terra e muitas bocas para alimentar. O segredo: rendia 10 vezes mais que o trigo.
Frutas e Legumes - Batata / Natural dos Andes, era considerada comida para porcos na Europa. Só fez sucesso no século 18, quando foi adaptada à Irlanda – que sofria para plantar legumes no clima frio.
Bebidas - Chocolate, café e chá / As grandes navegações popularizaram na Europa – e daí no resto do mundo – bebidas “exóticas”. Entre as mais populares estavam o chocolate americano, o café africano e o chá do Oriente.
Temperos - Especiarias / Como o ouro e a prata, as especiarias empurraram os europeus aos mares. A coragem foi recompensada com a maior moda de pratos com cravo e canela que já se viu na Europa.
Rev. Industrial - Séc. 19
Carnes - Peixe / Os primeiros refrigeradores foram logo adaptados para cargueiros e revolucionaram o consumo de peixe – em quantidade e variedade – fazendo-o chegar até a quem não estava perto de mares ou rios.
Cereais - Baguete / Necessidade e conseqüência da Revolução Industrial: por um lado, era preciso muito pão para alimentar os operários; por outro, só os fornos industriais inventados na época permitiam sua produção em série.
Frutas e Legumes - Tomate / Fábricas de conservas surgiram em 1804 e logo a Itália as usava para produzir extrato de tomate. Só então o fruto da América Central, ainda restrito ao Mediterrâneo, foi apresentado ao mundo .
Bebidas - Leite / Com a fabricação de geladeiras e a invenção da pasteurização, o leite podia ser levado a qualquer lugar – especialmente centros urbanos, onde sobravam operários e faltava espaço para as vacas.
Temperos - Açúcar / O comércio do açúcar de cana era dominado pelos ingleses. Para brigar com os rivais, Napoleão financiou a técnica descoberta na Áustria de extração de açúcar da beterraba, usada até hoje na Europa.
Era Moderna - Séc. 20
Carnes - Hambúrguer / No século 20, a praticidade passou a ser tão valorizada quanto os ingredientes. E o hambúrguer, servido diretamente na janela dos carros, foi o marco fundador do fast food.
Cereais - Pizza / Pães chatos com tempero eram feitos desde a Antiguidade. Mas a pizza se popularizou no século 19, para incentivar o consumo do extrato de tomate, principal produto da indústria alimentícia italiana.
Frutas e Legumes - Bananas / Até 1870, não existiam nos EUA. Então uma empresa passou a importá-las da América Central. Três décadas depois, o país consumia 16 milhões de cachos/ano. E o “boom” da banana ganhou o mundo.
Bebidas - Refrigerantes / A primeira marca surgiu em 1871, vendida como remédio. Mas logo os fabricantes notaram que esse apelo era desnecessário: sabor e praticidade garantiriam o sucesso da bebida.
Temperos - Ketchup / A receita atual é obra da Heinz. Em 1875, a empresa lançou em embalagem higiênica esse molho moderno, que dá gosto à comida sem complicar o trabalho da cozinheira.
“SUPERINTERESSANTE"
Extraído do Blog Controvérsia
Texto Tarso Araújo
As plantas e animais que comemos existiam antes mesmo de o homem abandonar o visual de macaco. De lá pra cá, o que mudou é como obtemos e preparamos as refeições. A história da comida evoluiu, dentada a dentada, junto com nosso poder de transformar o mundo
Antiguidade - 7 000 A.C.
Carnes - Carneiro / Há cerca de 10 mil anos, nômades desenvolveram a pecuária. E o carneiro, fonte de carne, leite e lã, era um dos animais mais úteis aos primeiros pastores da humanidade.
Cereais - Trigo / A agricultura nos deu grãos em quantidade. Para se transformarem em alimento, eram cozidos ou empapados. Também iam ao forno, de onde saíam em forma de pão.
Frutas e Legumes - Maçã / Frutas eram fontes valiosas de açúcar – e a maçã foi das primeiras a ser plantadas. Sempre ligada à sensualidade, seu gosto doce virou símbolo de pecado.
Bebidas - Cerveja / A fermentação foi descoberta ao mesmo tempo que a agricultura. Da cevada fazia-se a cerveja, mais popular que a água por não trazer riscos de contaminação.
Temperos - Sal / Antes mesmo de colocar o animal na cerca, o homem aprendeu que o sal, obtido em salmouras naturais, conservava a carne da caça.
Era clássica - Séc. 4 A.C.
Carnes - Porco / No século 3, era o item mais importante da “cesta básica” que Roma dava aos cidadãos. A gordura servia para temperar. No prato, a preferência era para as tetas e a vulva da porca.
Cereais - Macarrão / Povos do Mediterrâneo misturavam farinha e água para fazer o macco. Na Sicília, a massa passou a ser seca, cortada e cozida. Ganhou o nome de maccaruni – isso bem antes de Marco Polo existir.
Frutas e Legumes - Azeitona / Os gregos usavam o óleo para comer e tomar banho. Durante suas campanhas Alexandre, o Grande, difundiu o uso do azeite. Depois, lucrou pesado com as exportações.
Bebidas - Água / Roma inovou ao distribuí-la por chafarizes e aquedutos. Como a qualidade era duvidosa, os romanos preferiam a calda, fervida e vendida em tavernas, e a posca, desinfetada com vinagre.
Temperos - Mel / Primeiro adoçante conhecido pelo homem, era exclusividade dos banquetes reais na Mesopotâmia. Mas os gregos o fizeram parte da refeição comum, servido com queijo e pão.
Idade média - Séc. 6
Carnes - Boi / Agradeça a existência da picanha à invenção do arado de rodas. Antes dele, o boi era mais caro à agricultura do que ao prato - em Roma, o bovicídio e homicídio era punidos com a mesma pena.
Cereais - Aveia / Popularizou-se na crise demográfica da Europa, no século 13, quando o lema era aproveitar ao máximo a terra. Cultivada na entressafra do trigo, alimentava bois que depois alimentavam homens.
Frutas e Legumes - Melancia / Como a berinjela, foi apresentada ao Ocidente pelo árabes que ocuparam a Europa entre os séculos 7 e 15. Seu suco refrescante fez sucesso instantâneo.
Bebidas - Vinho / Vinhos de frutas eram feitos desde a Antiguidade. Mas bastou a versão de uva aparecer nos relatos da Santa Ceia para ela ganhar status mundial como a mais nobre entre as bebidas.
Temperos - Açafrão / A dificuldade de plantar especiarias no frio da Europa nutriu séculos de comércio com o Oriente. Rara exceção, o açafrão foi adaptado pelos árabes ao clima da península Ibérica.
Navegações - Séc. 15
Carnes - Peru / Para quem comia até garça nos castelos medievais, a descoberta dessa ave carnuda foi motivo de festa. Vindo do Novo Mundo, foi uma das últimas aves a se difundirem como alimento no planeta.
Cereais - Milho / O grão que era pilar da alimentação na América caiu no gosto de camponeses europeus com pouca terra e muitas bocas para alimentar. O segredo: rendia 10 vezes mais que o trigo.
Frutas e Legumes - Batata / Natural dos Andes, era considerada comida para porcos na Europa. Só fez sucesso no século 18, quando foi adaptada à Irlanda – que sofria para plantar legumes no clima frio.
Bebidas - Chocolate, café e chá / As grandes navegações popularizaram na Europa – e daí no resto do mundo – bebidas “exóticas”. Entre as mais populares estavam o chocolate americano, o café africano e o chá do Oriente.
Temperos - Especiarias / Como o ouro e a prata, as especiarias empurraram os europeus aos mares. A coragem foi recompensada com a maior moda de pratos com cravo e canela que já se viu na Europa.
Rev. Industrial - Séc. 19
Carnes - Peixe / Os primeiros refrigeradores foram logo adaptados para cargueiros e revolucionaram o consumo de peixe – em quantidade e variedade – fazendo-o chegar até a quem não estava perto de mares ou rios.
Cereais - Baguete / Necessidade e conseqüência da Revolução Industrial: por um lado, era preciso muito pão para alimentar os operários; por outro, só os fornos industriais inventados na época permitiam sua produção em série.
Frutas e Legumes - Tomate / Fábricas de conservas surgiram em 1804 e logo a Itália as usava para produzir extrato de tomate. Só então o fruto da América Central, ainda restrito ao Mediterrâneo, foi apresentado ao mundo .
Bebidas - Leite / Com a fabricação de geladeiras e a invenção da pasteurização, o leite podia ser levado a qualquer lugar – especialmente centros urbanos, onde sobravam operários e faltava espaço para as vacas.
Temperos - Açúcar / O comércio do açúcar de cana era dominado pelos ingleses. Para brigar com os rivais, Napoleão financiou a técnica descoberta na Áustria de extração de açúcar da beterraba, usada até hoje na Europa.
Era Moderna - Séc. 20
Carnes - Hambúrguer / No século 20, a praticidade passou a ser tão valorizada quanto os ingredientes. E o hambúrguer, servido diretamente na janela dos carros, foi o marco fundador do fast food.
Cereais - Pizza / Pães chatos com tempero eram feitos desde a Antiguidade. Mas a pizza se popularizou no século 19, para incentivar o consumo do extrato de tomate, principal produto da indústria alimentícia italiana.
Frutas e Legumes - Bananas / Até 1870, não existiam nos EUA. Então uma empresa passou a importá-las da América Central. Três décadas depois, o país consumia 16 milhões de cachos/ano. E o “boom” da banana ganhou o mundo.
Bebidas - Refrigerantes / A primeira marca surgiu em 1871, vendida como remédio. Mas logo os fabricantes notaram que esse apelo era desnecessário: sabor e praticidade garantiriam o sucesso da bebida.
Temperos - Ketchup / A receita atual é obra da Heinz. Em 1875, a empresa lançou em embalagem higiênica esse molho moderno, que dá gosto à comida sem complicar o trabalho da cozinheira.
“SUPERINTERESSANTE"
Extraído do Blog Controvérsia
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
A quem interessa o modelo agrícola do agronegócio
A imprensa endeusa o agronegócio, sem destacar que ele proporciona apenas 500.000 empregos
Desde que o governo Lula assumiu o mandato, estranhamente a imprensa brasileira, de forma unânime, tem se dedicado cotidianamente a pregar loas ao sucesso do agronegócio.
Por que essa campanha unificada, permanente, logo agora? Uma das explicações pode ser a influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica. Outra explicação pode ser a tentativa de impedir que o governo se anime a fazer uma reforma agrária massiva. E, assim, pregam que o único caminho para resolver os problemas da pobreza e da falta de emprego no campo seria o modelo do agronegócio.
Ora, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.
20 milhões sem sapatos
A imprensa brasileira, monopolizada por sete grupos e claramente vinculada aos interesses de classe dos grandes proprietários e das empresas transnacionais exportadoras de matérias-primas, faz o seu papel de propaganda. Mostra todos os dias máquinas agrícolas novinhas, navios carregados e índices de exportação agrícola, como se isso fosse sinônimo de soluções econômicas e sociais. E esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta.
Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!
Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.
Porque o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.
Mas queria aproveitar a paciência de vocês para mostrar que, mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Vamos aos dados estatísticos, resultados desse modelo agrícola cantado em prosa e verso.
O Brasil tem aproximadamente 350 milhões de hectares agricultáveis, que poderiam ser dedicados à lavoura. Mas, graças à concentração da propriedade da terra, cultivamos 50 milhões de hectares, apenas 14 por cento do que deveríamos cultivar. E essa área cultivada permanece estável desde 1985.
As fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento dessa área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse de colocar na mesa apenas esses produtos!
E existe outra parcela de estabelecimentos agrícolas, que fazem parte desse modelo, piores ainda, pois se dedicam apenas à pecuária extensiva ou a especular com a renda da terra. Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como “grandes propriedades improdutivas”, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares (uma Europa inteira parada...).
A falácia da modernidade
O Plano Nacional de Reforma Agrária aplicou a conceituação da Lei Agrária e dividiu todas as propriedades existentes entre pequenas (até 200 hectares, em média), médias (de 200 a 2.000 hectares) e grandes propriedades (acima de 2.000 hectares). E depois analisou o comportamento dos fatores de produção em relação a cada setor.
Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.
A famosa modernidade capitalista é uma falácia, 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores. Ou seja, a tal grande propriedade “moderna” não consegue nem ativar a indústria nacional de tratores. Por essa razão é que faz vinte anos que a demanda de tratores não aumenta. A indústria está vendendo em torno de 50.000 tratores por ano, enquanto no início da década de 80 chegou a vender 65.000.
Mas na hora de utilizar o crédito rural, dos bancos oficiais, com recursos públicos e taxas de juros diferenciadas, pode-se ver também os diferentes interesses. Na última safra (2003/04), a pequena propriedade teve acesso a 3 bilhões de reais, e a média e grande propriedade utilizaram 24 bilhões de reais do Banco do Brasil. E, o que é pior, apenas dez empresas transnacionais ligadas ao agronegócio pegaram no Banco do Brasil 4 bilhões de dinheiro público, brasileiro. Dez empresas transnacionais acessaram mais crédito do que todos os 4 milhões de famílias de pequenos agricultores. E ainda tem gente que acredita que as empresas transnacionais vêm aqui aplicar capital estrangeiro. Ao contrário, elas vêm acessar a nossa poupança nacional. Estamos financiando essas empresas estrangeiras, e a imprensa bate palmas!
Em termos dos resultados da produção, segundo o IBGE, a grande propriedade representa apenas 13,6 por cento de toda a produção, 29,6 por cento a média propriedade e 56,6 por cento de toda produção agropecuária nacional vem da agricultura familiar. E, por ramos de produção, é ainda mais claro a que interesses cada segmento defende. Mesmo na produção animal, a pequena propriedade representa 60 por cento de toda a produção, em função da produção de leite, de suínos e aves.
No quesito assalariados rurais, que é o símbolo do capitalismo, a média propriedade dá emprego para 1 milhão de pessoas, a grande propriedade para apenas 500.000. E, mesmo sendo familiar, a pequena propriedade dá emprego, além de aos seus familiares, para quase 1 milhão de assalariados rurais.
Desvio vem da colônia
O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas. E no caso brasileiro é ainda pior, pois quem está ganhando dinheiro com as exportações agrícolas são as transnacionais, como a Monsanto, a Cargill, a Bunge, a ADM, que controlam o comércio agrícola mundial. Elas têm um lucro médio de 28 por cento sobre o valor exportado, sem produzir um grão sequer.
Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo. Se todo o povo brasileiro tivesse renda para se alimentar direito, haveria uma demanda nacional infinitamente superior ao que hoje é exportado. A solução é dar condições para o povo comprar comida.
Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.
Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.
João Pedro Stedile
Revista Caros Amigos junho de 2004
Extraído de Geografia Geral e do Brasil
Desde que o governo Lula assumiu o mandato, estranhamente a imprensa brasileira, de forma unânime, tem se dedicado cotidianamente a pregar loas ao sucesso do agronegócio.
Por que essa campanha unificada, permanente, logo agora? Uma das explicações pode ser a influência crescente dos neoliberais no governo Lula, representados pelos ministérios da Agricultura, ou melhor, da exportação agrícola, da Indústria e Sadia, e da área econômica. Outra explicação pode ser a tentativa de impedir que o governo se anime a fazer uma reforma agrária massiva. E, assim, pregam que o único caminho para resolver os problemas da pobreza e da falta de emprego no campo seria o modelo do agronegócio.
Ora, a pobreza, o desemprego e a desigualdade social que existem no meio rural brasileiro são justamente frutos de quinhentos anos de um modelo agrícola que privilegia as exportações, desde que por aqui chegaram os europeus... e seus interesses.
20 milhões sem sapatos
A imprensa brasileira, monopolizada por sete grupos e claramente vinculada aos interesses de classe dos grandes proprietários e das empresas transnacionais exportadoras de matérias-primas, faz o seu papel de propaganda. Mostra todos os dias máquinas agrícolas novinhas, navios carregados e índices de exportação agrícola, como se isso fosse sinônimo de soluções econômicas e sociais. E esconde que no meio rural brasileiro temos 30 milhões que vivem em condições de pobreza absoluta, que 20 milhões nunca calçaram um par de sapatos, que 50 milhões de brasileiros passam fome todos os dias. Que 30 milhões de pessoas já não têm sequer seus dentes. Esquece de mostrar que apenas 8 por cento da população chega à universidade, e que, no Nordeste brasileiro, 60 por cento da população do meio rural é ainda analfabeta.
Esquece de dizer que no país de maior fronteira agrícola do mundo existem 4,5 milhões de famílias de trabalhadores sem terra!
Quais desses problemas o modelo do agronegócio resolve? Nenhum. Ao contrário, é justamente esse modelo agrícola que gerou tanta desigualdade, pobreza e desemprego.
Porque o modelo agrícola do agronegócio é organizado para produzir dólares, e produtos que interessam aos europeus, aos asiáticos, não aos brasileiros. E por isso não produz comida, empregos e justiça social. O agronegócio concentra. Leva para fora as riquezas produzidas aqui, em vez de distribuí-las.
Mas queria aproveitar a paciência de vocês para mostrar que, mesmo do ponto de vista da lógica do capitalismo nacional, o modelo do agronegócio é irracional, ou burro, se quiserem. Ou seja, esse modelo só interessa ao capital internacional, e nem sequer ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Vamos aos dados estatísticos, resultados desse modelo agrícola cantado em prosa e verso.
O Brasil tem aproximadamente 350 milhões de hectares agricultáveis, que poderiam ser dedicados à lavoura. Mas, graças à concentração da propriedade da terra, cultivamos 50 milhões de hectares, apenas 14 por cento do que deveríamos cultivar. E essa área cultivada permanece estável desde 1985.
As fazendas modernas do agronegócio ocupam 75 por cento dessa área cultivada, as melhores terras, para produzir apenas soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. E que interessam ao mercado externo. Imaginem se o povo brasileiro tivesse de colocar na mesa apenas esses produtos!
E existe outra parcela de estabelecimentos agrícolas, que fazem parte desse modelo, piores ainda, pois se dedicam apenas à pecuária extensiva ou a especular com a renda da terra. Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como “grandes propriedades improdutivas”, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares (uma Europa inteira parada...).
A falácia da modernidade
O Plano Nacional de Reforma Agrária aplicou a conceituação da Lei Agrária e dividiu todas as propriedades existentes entre pequenas (até 200 hectares, em média), médias (de 200 a 2.000 hectares) e grandes propriedades (acima de 2.000 hectares). E depois analisou o comportamento dos fatores de produção em relação a cada setor.
Em relação ao emprego, a pequena propriedade dá trabalho para 14 milhões de pessoas, a média para 1,8 milhão e a grande propriedade do agronegócio para apenas 500.000.
A famosa modernidade capitalista é uma falácia, 63 por cento de toda a frota de tratores brasileiros é usado por propriedades com menos de 200 hectares. E as propriedades acima de 1.000 hectares possuem apenas 36 por cento dos tratores. Ou seja, a tal grande propriedade “moderna” não consegue nem ativar a indústria nacional de tratores. Por essa razão é que faz vinte anos que a demanda de tratores não aumenta. A indústria está vendendo em torno de 50.000 tratores por ano, enquanto no início da década de 80 chegou a vender 65.000.
Mas na hora de utilizar o crédito rural, dos bancos oficiais, com recursos públicos e taxas de juros diferenciadas, pode-se ver também os diferentes interesses. Na última safra (2003/04), a pequena propriedade teve acesso a 3 bilhões de reais, e a média e grande propriedade utilizaram 24 bilhões de reais do Banco do Brasil. E, o que é pior, apenas dez empresas transnacionais ligadas ao agronegócio pegaram no Banco do Brasil 4 bilhões de dinheiro público, brasileiro. Dez empresas transnacionais acessaram mais crédito do que todos os 4 milhões de famílias de pequenos agricultores. E ainda tem gente que acredita que as empresas transnacionais vêm aqui aplicar capital estrangeiro. Ao contrário, elas vêm acessar a nossa poupança nacional. Estamos financiando essas empresas estrangeiras, e a imprensa bate palmas!
Em termos dos resultados da produção, segundo o IBGE, a grande propriedade representa apenas 13,6 por cento de toda a produção, 29,6 por cento a média propriedade e 56,6 por cento de toda produção agropecuária nacional vem da agricultura familiar. E, por ramos de produção, é ainda mais claro a que interesses cada segmento defende. Mesmo na produção animal, a pequena propriedade representa 60 por cento de toda a produção, em função da produção de leite, de suínos e aves.
No quesito assalariados rurais, que é o símbolo do capitalismo, a média propriedade dá emprego para 1 milhão de pessoas, a grande propriedade para apenas 500.000. E, mesmo sendo familiar, a pequena propriedade dá emprego, além de aos seus familiares, para quase 1 milhão de assalariados rurais.
Desvio vem da colônia
O Brasil vem sendo vítima dessa política de estímulo às exportações agrícolas desde o colonialismo. E todos sabem que esse modelo não desenvolveu nenhum país. Mesmo em termos de exportação, o país ganha quando exporta mercadorias, de origem industrial, com alto valor agregado. É por isso que a Embraer sozinha, com suas exportações de avião, representa a metade do valor de toda a exportação de soja! Ninguém se desenvolve exportando matérias-primas. E no caso brasileiro é ainda pior, pois quem está ganhando dinheiro com as exportações agrícolas são as transnacionais, como a Monsanto, a Cargill, a Bunge, a ADM, que controlam o comércio agrícola mundial. Elas têm um lucro médio de 28 por cento sobre o valor exportado, sem produzir um grão sequer.
Se o Brasil quiser resolver os problemas de emprego, pobreza no meio rural e desigualdade social, certamente não será pelo caminho do agronegócio. Será pela reforma agrária, que é a democratização da propriedade da terra. Pela organização da produção agrícola através da agricultura familiar, e orientando a produção para alimentos destinados ao mercado interno, para o povo. Se todo o povo brasileiro tivesse renda para se alimentar direito, haveria uma demanda nacional infinitamente superior ao que hoje é exportado. A solução é dar condições para o povo comprar comida.
Se a política não mudar, seguiremos tendo uma minoria ganhando muitos dólares, a pobreza aumentando, e o governo fazendo discurso para dizer que vai aumentar a bolsa-família para atender os famintos, que continuarão aumentando.
Até que, um dia, o acúmulo dessas contradições gere uma nova e verdadeira política.
João Pedro Stedile
Revista Caros Amigos junho de 2004
Extraído de Geografia Geral e do Brasil
Tumulto na produção mundial de cereais
23/09/2008
Com o milho norte-americano desviado para a fabricação do etanol, os preços do produto disparam no mercado internacional. Enquanto isso, mudanças climáticas na Austrália, Argentina e Rússia afetam as safras de trigo. Como se não bastasse, o aumento do consumo de carne subtrai importantes reservas cerealistas
Dominique Baillard
Revoltas populares questionam o alto custo de vida em Burquina Faso e na República dos Camarões. Manifestações contra o valor do pão ganharam as ruas do Senegal e do Egito. Observadores internacionais como Jean Ziegler, há até pouco tempo relator especial das Nações Unidas pelo direito à alimentação, evocam o temor da falta de alimentos no Oeste do continente negro [1]. A ONU, por sua vez, classifica o aumento mundial dos preços dos cereais como um “tsunami silencioso”, que pode deixar cem milhões de pessoas famintas.
Até nos países industrializados a segurança alimentar voltou a ser motivo de preocupação. No Reino Unido, por exemplo, onde a agricultura foi sacrificada no altar da revolução industrial [2], o departamento encarregado dos negócios rurais, alimentação e meio ambiente está alarmado com as ameaças em vista [3].
A alta de preços já era evidente em agosto do ano passado, quando os agricultores do hemisfério Norte realizaram sua colheita e as cotações de grãos simplesmente duplicaram. Na Câmara de Comércio de Chicago, referência para o mercado mundial de cereais, a tonelada do trigo passou de 200 dólares para 400 dólares. O mesmo cenário pôde ser visto em Paris, onde o preço do trigo moído atingiu seu ápice no começo do mês de setembro e chegou a 300 euros por tonelada. No decorrer de março deste ano, quando os Estados Unidos haviam quase esgotado sua capacidade de exportação, os preços continuaram a subir. Em doze meses, o valor do trigo aumentou 130% no mercado de futuros americano! Surpreendidas, as indústrias de moagem e os fabricantes de massa e de alimentos destinados ao gado protestaram com veemência nos países desenvolvidos.
De fato, houve um rompimento do equilíbrio precário entre oferta e procura. O fenômeno ocorreu em função de dois acontecimentos. O primeiro deles foi o aumento da demanda gerado pelo boom dos biocombustíveis [4]. Sua fabricação passou a absorver 10% da produção mundial de milho, e de acordo com o Instituto de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI), sediado em Washington, a situação tende a se agravar: a indústria de etanol poderá fazer o preço do milho subir até 2020 entre 25% e 72%, na previsão mais alarmista. A variação dependerá fundamentalmente dos Estados Unidos, principal fabricante de biocombustíveis do mundo [5].
A segunda ocorrência está relacionada às mudanças climáticas, tais como a seca na Austrália, a geada na Argentina e a falta de sol e o excesso de água na Europa, que interferiram negativamente na colheita. Tanto o etanol quanto as alterações do clima carregam em seu paroxismo as tensões causadas pela demanda crescente de populações inteiras, como a chinesa.
Outro fator que devemos levar em conta é que somos cada vez mais carnívoros. O crescimento econômico dos países emergentes, associado à urbanização, modificou profundamente o comportamento alimentar da humanidade. Os chineses, por exemplo, consumiram cinco vezes mais carne em 2005 que em 1980. Como são necessários três quilos de grãos para produzir um quilo de carne de ave, e mais que o dobro para se obter a mesma quantidade de carne bovina, para dar conta da demanda é preciso aumentar a produção dos cereais forrageiros e os oleaginosos, integrantes da dieta básica dos animais.
Com isso, as exportações mundiais de trigo triplicaram nos últimos cinqüenta anos [6]. O Egito, celeiro da Roma antiga, tornou-se o principal consumidor das colheitas estrangeiras. Na região do Mediterrâneo, assim como na África subsaariana, o crescimento das importações a preços baixos durante décadas de abundância praticamente asfixiou a agricultura local e a “conta alimentar” desses países tornou-se exorbitante. Em um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em junho de 2007, o economista Adam Prakash estimava que as importações alimentares vão custar 90% a mais que em 2000 para as nações menos avançadas [7]. Apenas entre 2006 e 2007, a “conta alimentar” cresceu um terço na África e até 50% nos países mais dependentes.
Os grandes produtores são os mais favorecidos com essa situação. O maior deles, os Estados Unidos, registrou uma receita agrícola recorde: 85 bilhões de dólares no ano passado. De acordo com as estimativas do Ministério da Agricultura americano, o crescimento em 2008 parece ainda mais promissor. Entre os países emergentes tradicionalmente exportadores, tais como a Argentina [8] e a Rússia, a crise não passou incólume e gerou inflação. A solução encontrada foi erigir barreiras para manter os preços locais em níveis razoáveis, o que gerou mais expectativa no comércio global.
Na outra ponta da cadeia estão os países em desenvolvimento. Essencialmente importadores, eles enfrentam inúmeros levantes populares, como os que irromperam no México [9], no Senegal, no Marrocos e na Mauritânia. Afinal, se o aumento da cesta básica é suportável nas economias desenvolvidas, em que a alimentação não representa mais que 14% dos gastos, ele se torna inadministrável na África subsaariana, onde os gastos com alimentos consomem 60% da renda. Expostas, essas nações recorrem às subvenções quando suas finanças permitem. Em setembro de 2007, por exemplo, o aumento do preço do pão imposto pelo sindicato dos padeiros provocou violentas manifestações no Marrocos. Temendo que a revolta popular degenerasse em convulsão social, o governo tunisiano chegou a pedir aos padeiros que reduzissem o peso do produto, para evitar a alta. Por fim, o Estado preferiu suspender as diversas taxas sobre a importação para aliviar o custo das empresas de moagem.
Mais um problema enfrentado pela África é o corte de ajuda alimentar vinda do exterior. “Quando o preço do trigo aumenta, o auxílio diminui. A generosidade dos países do Norte se expressa apenas quando eles dispõem de excedentes para doação, que na verdade contribuem para baixar os estoques e manter os preços”, observa Marc Dufumier, especialista em agricultura comparada. Os números publicados pelo Conselho Internacional de Cereais [10] confirmam: no decorrer de 2005-2006, 8,3 milhões de toneladas de grãos foram enviadas como ajuda alimentar. Já em 2006-2007, foram 7,4 milhões e este ano o auxílio deverá cair para 6 milhões de toneladas.
As revoltas relacionadas à fome, portanto, não estão perto de se extinguir: uma vez que a oferta não irá satisfazer a demanda, os preços continuarão sua escalada. Para reverter a tendência, os governos poderiam recorrer ao “imperativo do consumo cidadão”, como sugerido por um colunista tunisiano [11], e pedir à população que ingerisse menos cuscuz, menos pão e, principalmente, menos carne. Mas o apelo tem poucas chances de obter apoio nos países onde a dieta básica começa a melhorar. É o caso da China, onde Ministério da Saúde está estimulando as mulheres a consumirem laticínios para absorver mais cálcio. Ora, quando falamos de leite, falamos não só de gado, mas também de oleaginosas e cereais para sua nutrição.
É preciso contar igualmente com o fenômeno especulativo. “Seja um agente da volatilidade dos mercados agrícolas, não um mero espectador”, aconselhava, no final de 2007, a Financeagri, empresa francesa de informações especializada em matérias-primas agrícolas. Esta oferta comercial ilustra a revolução em curso nos mercados de futuros agrícolas. Inicialmente criados para cobrir o risco da variação de preços, eles se tornaram terrenos de caça apreciados pelos especuladores.
Os índices agrícolas, que refletem a evolução das cotações, fazem sucesso. No momento em que os mercados de cereais dispararam, quintuplicou o volume de capitais gerados pelos fundos de investimentos cotados sobre os produtos agrícolas europeus, passando de 156 milhões de dólares para 911 milhões de dólares, segundo a Barca, filial do banco britânico Barclays [12]. De acordo com a mesma fonte, os empréstimos contraídos dos fundos investidos nos mercados agrícolas americanos deram um salto ainda maior, multiplicando-se por sete entre o primeiro e o último trimestres de 2007.
Um outro fator seduziu os investidores: a convergência entre os preços dos produtos energéticos e dos cereais destinados à indústria de biocombustíveis. Nessa atmosfera eufórica, os agricultores também procuram maximizar seus lucros. Na França, muitos contratos não foram honrados, especialmente para a entrega do trigo moído e da cevada, já que os produtores venderam a colheita diretamente aos industriais. Uma atitude bem compreensível, reconhece Philippe Mangin, presidente da Coop de France [13]: “os camponeses nunca depararam com tamanha volatilidade e as cotações triplicaram em quinze meses! É de perder a cabeça, principalmente após três anos de vacas magras”. Por isso mesmo, segundo as estimativas do Conselho Internacional de Cereais, a superfície de trigo plantada na França deverá aumentar em 4% em 2008.
“A terra é um investimento promissor”, assegura o investidor britânico Jim Slater. Após ter feito fortuna no mercado de metais, ele redirecionou seu foco para a agricultura, privilegiando os investimentos nos programas de irrigação. As vastas estepes da Sibéria Oriental, na Rússia, e as terras negras da Ucrânia estão bem cotadas por sua vocação para desenvolver cultivos em larga escala, embora um pouco prejudicadas pelo clima continental, principalmente pelas geadas. Em contrapartida, na América do Sul, a Argentina e o Brasil podem transformar o pampa e as florestas em terras cultiváveis. “Ainda há ganhos de produtividade dos quais as pessoas nem se dão conta”, estima Marc Dufumier. Sem dúvida, as duas nações guardam o futuro da agricultura de exportação, onde os custos de produção são mais baixos que na Europa e nos Estados Unidos e os rendimentos ainda estão incipientes. Mas, como sempre, o desenvolvimento pode trazer conseqüências perversas, como a generalização dos organismos geneticamente modificados (OGM), onipresentes na Argentina, e o aumento do desflorestamento no Brasil.
Para as nações mais afetadas pelo choque dos cereais, a opção é mais radical ainda: passa por um verdadeiro renascimento de sua agricultura. O Mali já está a salvo, graças aos investimentos na produção de arroz no delta do rio Níger e ao bom senso dos cultivadores de algodão. Decepcionados com a deterioração do preço oferecido pelas empresas algodoeiras, eles utilizaram os insumos alocados a essa cultura para suas sementes de sorgo ou de milho. No vizinho Burquina Faso, os campos de soja também substituíram vantajosamente o produto.
Assim, o aquecimento dos cereais colocou novamente em pauta a questão do papel da agricultura no desenvolvimento. Ironia da história, o Banco Mundial, que contribuiu para enfraquecer os cultivos nos países ao impor a liberalização da economia, incluiu esse setor no centro dos esforços da luta contra a pobreza em seu relatório de 2008.
[1] Ler Jean Ziegler, disponível no site.
[2] Entre 1770 e l870, esse setor reduziu sua participação na renda nacional de 45 % para 14 %.
[3] Leia o estudo, publicado em dezembro de 2006, está disponível em Com o aquecimento das matérias-primas agrícolas, a segurança alimentar tornou-se um tema recorrente nas intervenções das autoridades políticas britânicas. Ler Jenny Wiggins e Javier Blas, Financial Times, Londres, 24 de outubro de 2007.
[4] Eric Holtz-Giménez, “Les cinq mythes de la transition vers les agrocarburants”, Le Monde diplomatique, junho de 2007.
[5] 5 Se for aplicada a lei sobre energia, votada pelo Congresso americano no final de 2007, será necessário injetar de 100 a 110 milhões de toneladas de milho nas destilarias em 2008, contra os 81 milhões de toneladas no ano anterior. Sabendo que os Estados Unidos produzem 40 % do milho mundial e cerca da metade do volume exportado, qualquer variação de sua colheita abala o mercado internacional de cereais. O Brasil é o segundo maior fabricante, mas baseia sua produção na cana-de-açúcar.
[6] O trigo é consumido em quase todas as partes. Suas propriedades físicas fazem dele o único cereal panificável: ele é insubstituível na fabricação do pão, das massas e do cuscuz. É o cereal mais comercializado e seus maiores exportadores são os Estados Unidos, a União Européia, a Austrália, o Canadá e a Argentina.
[7] Perspectivas da alimentação 2007, Roma, 7 de junho de 2007.
[8] No decorrer de março, o governo de Cristina Kirchner anunciou o aumento em quase 9% do imposto sobre as exportações de soja, girassol, milho e trigo. Considerando que o aumento dos preços da soja (70% em 2007) justifica essa alta, o governo pretende utilizá-lo para redistribuir as riquezas para os setores mais pobres. A medida provocou duas semanas de greves e protesto de grandes proprietários e agricultores, acarretando uma carestia organizada de alimentos nas cidades.
[9] Ler Anne Vigna, “Sem tortillas nem empregos”, Le Monde diplomatique Brasil, edição 9.
[10] O Conselho Internacional de Cereais agrupa todos os signatários da Convenção sobre o comércio de cereais. Ele realiza duas sessões ordinárias a cada ano, geralmente em junho e em dezembro. Tem o papel de fiscalizar o cumprimento da convenção, de debater a evolução e a orientação dos mercados cerealistas mundiais e de assegurar o acompanhamento das modificações feitas nas políticas cerealistas nacionais e suas eventuais implicações. Ver o site.
[11] Larbi Chennaoui, La presse de Tunisie, Tunis, novembro de 2007.
[12] Estudo trimestral The Commodity Refiner consagrado aos mercados de matérias primas.
[13] Leia mais
“Le Monde diplomatique”
Extraído de: Blog Controvérsia, 23/09/2008
Com o milho norte-americano desviado para a fabricação do etanol, os preços do produto disparam no mercado internacional. Enquanto isso, mudanças climáticas na Austrália, Argentina e Rússia afetam as safras de trigo. Como se não bastasse, o aumento do consumo de carne subtrai importantes reservas cerealistas
Dominique Baillard
Revoltas populares questionam o alto custo de vida em Burquina Faso e na República dos Camarões. Manifestações contra o valor do pão ganharam as ruas do Senegal e do Egito. Observadores internacionais como Jean Ziegler, há até pouco tempo relator especial das Nações Unidas pelo direito à alimentação, evocam o temor da falta de alimentos no Oeste do continente negro [1]. A ONU, por sua vez, classifica o aumento mundial dos preços dos cereais como um “tsunami silencioso”, que pode deixar cem milhões de pessoas famintas.
Até nos países industrializados a segurança alimentar voltou a ser motivo de preocupação. No Reino Unido, por exemplo, onde a agricultura foi sacrificada no altar da revolução industrial [2], o departamento encarregado dos negócios rurais, alimentação e meio ambiente está alarmado com as ameaças em vista [3].
A alta de preços já era evidente em agosto do ano passado, quando os agricultores do hemisfério Norte realizaram sua colheita e as cotações de grãos simplesmente duplicaram. Na Câmara de Comércio de Chicago, referência para o mercado mundial de cereais, a tonelada do trigo passou de 200 dólares para 400 dólares. O mesmo cenário pôde ser visto em Paris, onde o preço do trigo moído atingiu seu ápice no começo do mês de setembro e chegou a 300 euros por tonelada. No decorrer de março deste ano, quando os Estados Unidos haviam quase esgotado sua capacidade de exportação, os preços continuaram a subir. Em doze meses, o valor do trigo aumentou 130% no mercado de futuros americano! Surpreendidas, as indústrias de moagem e os fabricantes de massa e de alimentos destinados ao gado protestaram com veemência nos países desenvolvidos.
De fato, houve um rompimento do equilíbrio precário entre oferta e procura. O fenômeno ocorreu em função de dois acontecimentos. O primeiro deles foi o aumento da demanda gerado pelo boom dos biocombustíveis [4]. Sua fabricação passou a absorver 10% da produção mundial de milho, e de acordo com o Instituto de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI), sediado em Washington, a situação tende a se agravar: a indústria de etanol poderá fazer o preço do milho subir até 2020 entre 25% e 72%, na previsão mais alarmista. A variação dependerá fundamentalmente dos Estados Unidos, principal fabricante de biocombustíveis do mundo [5].
A segunda ocorrência está relacionada às mudanças climáticas, tais como a seca na Austrália, a geada na Argentina e a falta de sol e o excesso de água na Europa, que interferiram negativamente na colheita. Tanto o etanol quanto as alterações do clima carregam em seu paroxismo as tensões causadas pela demanda crescente de populações inteiras, como a chinesa.
Outro fator que devemos levar em conta é que somos cada vez mais carnívoros. O crescimento econômico dos países emergentes, associado à urbanização, modificou profundamente o comportamento alimentar da humanidade. Os chineses, por exemplo, consumiram cinco vezes mais carne em 2005 que em 1980. Como são necessários três quilos de grãos para produzir um quilo de carne de ave, e mais que o dobro para se obter a mesma quantidade de carne bovina, para dar conta da demanda é preciso aumentar a produção dos cereais forrageiros e os oleaginosos, integrantes da dieta básica dos animais.
Com isso, as exportações mundiais de trigo triplicaram nos últimos cinqüenta anos [6]. O Egito, celeiro da Roma antiga, tornou-se o principal consumidor das colheitas estrangeiras. Na região do Mediterrâneo, assim como na África subsaariana, o crescimento das importações a preços baixos durante décadas de abundância praticamente asfixiou a agricultura local e a “conta alimentar” desses países tornou-se exorbitante. Em um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em junho de 2007, o economista Adam Prakash estimava que as importações alimentares vão custar 90% a mais que em 2000 para as nações menos avançadas [7]. Apenas entre 2006 e 2007, a “conta alimentar” cresceu um terço na África e até 50% nos países mais dependentes.
Os grandes produtores são os mais favorecidos com essa situação. O maior deles, os Estados Unidos, registrou uma receita agrícola recorde: 85 bilhões de dólares no ano passado. De acordo com as estimativas do Ministério da Agricultura americano, o crescimento em 2008 parece ainda mais promissor. Entre os países emergentes tradicionalmente exportadores, tais como a Argentina [8] e a Rússia, a crise não passou incólume e gerou inflação. A solução encontrada foi erigir barreiras para manter os preços locais em níveis razoáveis, o que gerou mais expectativa no comércio global.
Na outra ponta da cadeia estão os países em desenvolvimento. Essencialmente importadores, eles enfrentam inúmeros levantes populares, como os que irromperam no México [9], no Senegal, no Marrocos e na Mauritânia. Afinal, se o aumento da cesta básica é suportável nas economias desenvolvidas, em que a alimentação não representa mais que 14% dos gastos, ele se torna inadministrável na África subsaariana, onde os gastos com alimentos consomem 60% da renda. Expostas, essas nações recorrem às subvenções quando suas finanças permitem. Em setembro de 2007, por exemplo, o aumento do preço do pão imposto pelo sindicato dos padeiros provocou violentas manifestações no Marrocos. Temendo que a revolta popular degenerasse em convulsão social, o governo tunisiano chegou a pedir aos padeiros que reduzissem o peso do produto, para evitar a alta. Por fim, o Estado preferiu suspender as diversas taxas sobre a importação para aliviar o custo das empresas de moagem.
Mais um problema enfrentado pela África é o corte de ajuda alimentar vinda do exterior. “Quando o preço do trigo aumenta, o auxílio diminui. A generosidade dos países do Norte se expressa apenas quando eles dispõem de excedentes para doação, que na verdade contribuem para baixar os estoques e manter os preços”, observa Marc Dufumier, especialista em agricultura comparada. Os números publicados pelo Conselho Internacional de Cereais [10] confirmam: no decorrer de 2005-2006, 8,3 milhões de toneladas de grãos foram enviadas como ajuda alimentar. Já em 2006-2007, foram 7,4 milhões e este ano o auxílio deverá cair para 6 milhões de toneladas.
As revoltas relacionadas à fome, portanto, não estão perto de se extinguir: uma vez que a oferta não irá satisfazer a demanda, os preços continuarão sua escalada. Para reverter a tendência, os governos poderiam recorrer ao “imperativo do consumo cidadão”, como sugerido por um colunista tunisiano [11], e pedir à população que ingerisse menos cuscuz, menos pão e, principalmente, menos carne. Mas o apelo tem poucas chances de obter apoio nos países onde a dieta básica começa a melhorar. É o caso da China, onde Ministério da Saúde está estimulando as mulheres a consumirem laticínios para absorver mais cálcio. Ora, quando falamos de leite, falamos não só de gado, mas também de oleaginosas e cereais para sua nutrição.
É preciso contar igualmente com o fenômeno especulativo. “Seja um agente da volatilidade dos mercados agrícolas, não um mero espectador”, aconselhava, no final de 2007, a Financeagri, empresa francesa de informações especializada em matérias-primas agrícolas. Esta oferta comercial ilustra a revolução em curso nos mercados de futuros agrícolas. Inicialmente criados para cobrir o risco da variação de preços, eles se tornaram terrenos de caça apreciados pelos especuladores.
Os índices agrícolas, que refletem a evolução das cotações, fazem sucesso. No momento em que os mercados de cereais dispararam, quintuplicou o volume de capitais gerados pelos fundos de investimentos cotados sobre os produtos agrícolas europeus, passando de 156 milhões de dólares para 911 milhões de dólares, segundo a Barca, filial do banco britânico Barclays [12]. De acordo com a mesma fonte, os empréstimos contraídos dos fundos investidos nos mercados agrícolas americanos deram um salto ainda maior, multiplicando-se por sete entre o primeiro e o último trimestres de 2007.
Um outro fator seduziu os investidores: a convergência entre os preços dos produtos energéticos e dos cereais destinados à indústria de biocombustíveis. Nessa atmosfera eufórica, os agricultores também procuram maximizar seus lucros. Na França, muitos contratos não foram honrados, especialmente para a entrega do trigo moído e da cevada, já que os produtores venderam a colheita diretamente aos industriais. Uma atitude bem compreensível, reconhece Philippe Mangin, presidente da Coop de France [13]: “os camponeses nunca depararam com tamanha volatilidade e as cotações triplicaram em quinze meses! É de perder a cabeça, principalmente após três anos de vacas magras”. Por isso mesmo, segundo as estimativas do Conselho Internacional de Cereais, a superfície de trigo plantada na França deverá aumentar em 4% em 2008.
“A terra é um investimento promissor”, assegura o investidor britânico Jim Slater. Após ter feito fortuna no mercado de metais, ele redirecionou seu foco para a agricultura, privilegiando os investimentos nos programas de irrigação. As vastas estepes da Sibéria Oriental, na Rússia, e as terras negras da Ucrânia estão bem cotadas por sua vocação para desenvolver cultivos em larga escala, embora um pouco prejudicadas pelo clima continental, principalmente pelas geadas. Em contrapartida, na América do Sul, a Argentina e o Brasil podem transformar o pampa e as florestas em terras cultiváveis. “Ainda há ganhos de produtividade dos quais as pessoas nem se dão conta”, estima Marc Dufumier. Sem dúvida, as duas nações guardam o futuro da agricultura de exportação, onde os custos de produção são mais baixos que na Europa e nos Estados Unidos e os rendimentos ainda estão incipientes. Mas, como sempre, o desenvolvimento pode trazer conseqüências perversas, como a generalização dos organismos geneticamente modificados (OGM), onipresentes na Argentina, e o aumento do desflorestamento no Brasil.
Para as nações mais afetadas pelo choque dos cereais, a opção é mais radical ainda: passa por um verdadeiro renascimento de sua agricultura. O Mali já está a salvo, graças aos investimentos na produção de arroz no delta do rio Níger e ao bom senso dos cultivadores de algodão. Decepcionados com a deterioração do preço oferecido pelas empresas algodoeiras, eles utilizaram os insumos alocados a essa cultura para suas sementes de sorgo ou de milho. No vizinho Burquina Faso, os campos de soja também substituíram vantajosamente o produto.
Assim, o aquecimento dos cereais colocou novamente em pauta a questão do papel da agricultura no desenvolvimento. Ironia da história, o Banco Mundial, que contribuiu para enfraquecer os cultivos nos países ao impor a liberalização da economia, incluiu esse setor no centro dos esforços da luta contra a pobreza em seu relatório de 2008.
[1] Ler Jean Ziegler, disponível no site.
[2] Entre 1770 e l870, esse setor reduziu sua participação na renda nacional de 45 % para 14 %.
[3] Leia o estudo, publicado em dezembro de 2006, está disponível em Com o aquecimento das matérias-primas agrícolas, a segurança alimentar tornou-se um tema recorrente nas intervenções das autoridades políticas britânicas. Ler Jenny Wiggins e Javier Blas, Financial Times, Londres, 24 de outubro de 2007.
[4] Eric Holtz-Giménez, “Les cinq mythes de la transition vers les agrocarburants”, Le Monde diplomatique, junho de 2007.
[5] 5 Se for aplicada a lei sobre energia, votada pelo Congresso americano no final de 2007, será necessário injetar de 100 a 110 milhões de toneladas de milho nas destilarias em 2008, contra os 81 milhões de toneladas no ano anterior. Sabendo que os Estados Unidos produzem 40 % do milho mundial e cerca da metade do volume exportado, qualquer variação de sua colheita abala o mercado internacional de cereais. O Brasil é o segundo maior fabricante, mas baseia sua produção na cana-de-açúcar.
[6] O trigo é consumido em quase todas as partes. Suas propriedades físicas fazem dele o único cereal panificável: ele é insubstituível na fabricação do pão, das massas e do cuscuz. É o cereal mais comercializado e seus maiores exportadores são os Estados Unidos, a União Européia, a Austrália, o Canadá e a Argentina.
[7] Perspectivas da alimentação 2007, Roma, 7 de junho de 2007.
[8] No decorrer de março, o governo de Cristina Kirchner anunciou o aumento em quase 9% do imposto sobre as exportações de soja, girassol, milho e trigo. Considerando que o aumento dos preços da soja (70% em 2007) justifica essa alta, o governo pretende utilizá-lo para redistribuir as riquezas para os setores mais pobres. A medida provocou duas semanas de greves e protesto de grandes proprietários e agricultores, acarretando uma carestia organizada de alimentos nas cidades.
[9] Ler Anne Vigna, “Sem tortillas nem empregos”, Le Monde diplomatique Brasil, edição 9.
[10] O Conselho Internacional de Cereais agrupa todos os signatários da Convenção sobre o comércio de cereais. Ele realiza duas sessões ordinárias a cada ano, geralmente em junho e em dezembro. Tem o papel de fiscalizar o cumprimento da convenção, de debater a evolução e a orientação dos mercados cerealistas mundiais e de assegurar o acompanhamento das modificações feitas nas políticas cerealistas nacionais e suas eventuais implicações. Ver o site.
[11] Larbi Chennaoui, La presse de Tunisie, Tunis, novembro de 2007.
[12] Estudo trimestral The Commodity Refiner consagrado aos mercados de matérias primas.
[13] Leia mais
“Le Monde diplomatique”
Extraído de: Blog Controvérsia, 23/09/2008
sábado, 20 de setembro de 2008
Ministério, sim! Privatização das águas, não!
20 de Setembro de 2008 às 08h 00m · Jessica · Arquivado sob Geral
Pastoral dos Pescadores *
Adital - Enfim, depois de muita luta dos pescadores do Brasil, foi criado o Ministério da Pesca. Ao contrário de comemorar ingenuamente a vitória e se acomodar, precisamos nos preparar para uma luta muito maior que agora se inicia: garantir que este ministério esteja voltado para os interesses dos trabalhadores pescadores e pescadoras artesanais e para um projeto nacional que interesse ao povo brasileiro e não seja uma estrutura governamental submetida aos interesses dos ricos e do hidronegócio. Devemos estar atentos acerca do espaço a ser ocupado pela pesca artesanal neste novo ministério.
Existe uma grande euforia do setor empresarial. Eles acreditam que controlam o Ministério e que ele será um aliado poderoso para os planos de Privatização do Mar e dos Rios para implantar grandes fazendas de cultivo concentrando renda e território nas mãos de poucos. Eles são os mesmos que desenvolveram cultivos de Salmão no Chile levando grande prejuízo para os pescadores daquele país. Empresários da carcinicultura também têm interesse em migrar para fazendas marinhas, pois a atividade está em crise sanitária causada por várias doenças e estão enfrentando a resistência dos trabalhadores dos manguezais.
Estamos com grande preocupação devido a algumas ações realizadas pela Secretaria da Pesca que sinalizam alianças com a elite empresarial da aqüicultura e seus interesses em privatizar o Mar e os Rios brasileiros para implantar grandes fazendas. Na calada da noite, durante o carnaval deste ano, enquanto muitos pescadores e pescadoras estavam desavisados tentou-se privatizar 160 hectares do Mar a poucos quilômetros da praia de Boa Viagem no Estado de Pernambuco numa área importante para a pesca artesanal. Este fato marcou a primeira fatia do mar a ser privatizada no litoral brasileiro feita de forma covarde e inconseqüente, ignorando a legislação brasileira e os tratados internacionais assinados pelo Brasil como a resolução 169 da OIT que trata de direitos das populações tradicionais. Outras privatizações estão sendo planejadas para o litoral de São Paulo e Bahia e também em Açudes e Barragens como é o caso do Castanhão no Ceará. É para isso que eles querem um Ministério? É para isso que eles querem que certas competências que hoje estão em outros órgãos que resistem à privatização de espaços das populações tradicionais sejam repassadas para este novo ministério?
Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pesca artesanal como argumento para legitimar um investimento maciço em aqüicultura de grande escala. De fato existe uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadas pelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calar é: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos como causas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimento insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais, concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental e desrespeita a legislação. Acrescenta-se a isso, a insuficiência das políticas públicas, ordenamento participativo e investimentos adequados voltados para a pesca artesanal e para as comunidades tradicionais. Em lugar de enfrentar as causas dos problemas e fortalecer a pesca artesanal vemos o discurso falacioso de uma elite desenvolvimentista e seus aliados justificando a privatização das águas do Mar e dos Rios e contando com a subserviência da Secretaria de Pesca.
Reafirmamos a importância estratégica da pesca artesanal do Brasil para a inclusão social, para a segurança alimentar, para o desenvolvimento sustentável, para a preservação da biodiversidade e preservação da identidade e da cultura das populações tradicionais. Exigimos garantia do território que historicamente ocupamos e ações efetivas de estado voltadas para os povos das águas.
*CNBB - Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz
“Adital”
Extraído do blog Controvérsia
Pastoral dos Pescadores *
Adital - Enfim, depois de muita luta dos pescadores do Brasil, foi criado o Ministério da Pesca. Ao contrário de comemorar ingenuamente a vitória e se acomodar, precisamos nos preparar para uma luta muito maior que agora se inicia: garantir que este ministério esteja voltado para os interesses dos trabalhadores pescadores e pescadoras artesanais e para um projeto nacional que interesse ao povo brasileiro e não seja uma estrutura governamental submetida aos interesses dos ricos e do hidronegócio. Devemos estar atentos acerca do espaço a ser ocupado pela pesca artesanal neste novo ministério.
Existe uma grande euforia do setor empresarial. Eles acreditam que controlam o Ministério e que ele será um aliado poderoso para os planos de Privatização do Mar e dos Rios para implantar grandes fazendas de cultivo concentrando renda e território nas mãos de poucos. Eles são os mesmos que desenvolveram cultivos de Salmão no Chile levando grande prejuízo para os pescadores daquele país. Empresários da carcinicultura também têm interesse em migrar para fazendas marinhas, pois a atividade está em crise sanitária causada por várias doenças e estão enfrentando a resistência dos trabalhadores dos manguezais.
Estamos com grande preocupação devido a algumas ações realizadas pela Secretaria da Pesca que sinalizam alianças com a elite empresarial da aqüicultura e seus interesses em privatizar o Mar e os Rios brasileiros para implantar grandes fazendas. Na calada da noite, durante o carnaval deste ano, enquanto muitos pescadores e pescadoras estavam desavisados tentou-se privatizar 160 hectares do Mar a poucos quilômetros da praia de Boa Viagem no Estado de Pernambuco numa área importante para a pesca artesanal. Este fato marcou a primeira fatia do mar a ser privatizada no litoral brasileiro feita de forma covarde e inconseqüente, ignorando a legislação brasileira e os tratados internacionais assinados pelo Brasil como a resolução 169 da OIT que trata de direitos das populações tradicionais. Outras privatizações estão sendo planejadas para o litoral de São Paulo e Bahia e também em Açudes e Barragens como é o caso do Castanhão no Ceará. É para isso que eles querem um Ministério? É para isso que eles querem que certas competências que hoje estão em outros órgãos que resistem à privatização de espaços das populações tradicionais sejam repassadas para este novo ministério?
Não aceitamos o discurso de inviabilidade da pesca artesanal como argumento para legitimar um investimento maciço em aqüicultura de grande escala. De fato existe uma diminuição nos estoques pesqueiros nas áreas utilizadas pelos pescadores artesanais. Contudo, a pergunta que não quer calar é: porque estes estoques estão diminuindo? Identificamos como causas desta diminuição de pescado um modelo de desenvolvimento insustentável, que despreza a cultura das populações tradicionais, concentra renda e território, é marcado pelo racismo ambiental e desrespeita a legislação. Acrescenta-se a isso, a insuficiência das políticas públicas, ordenamento participativo e investimentos adequados voltados para a pesca artesanal e para as comunidades tradicionais. Em lugar de enfrentar as causas dos problemas e fortalecer a pesca artesanal vemos o discurso falacioso de uma elite desenvolvimentista e seus aliados justificando a privatização das águas do Mar e dos Rios e contando com a subserviência da Secretaria de Pesca.
Reafirmamos a importância estratégica da pesca artesanal do Brasil para a inclusão social, para a segurança alimentar, para o desenvolvimento sustentável, para a preservação da biodiversidade e preservação da identidade e da cultura das populações tradicionais. Exigimos garantia do território que historicamente ocupamos e ações efetivas de estado voltadas para os povos das águas.
*CNBB - Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz
“Adital”
Extraído do blog Controvérsia
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
Grilagem de terras públicas na Amazônia
19 de Setembro de 2008 às 22h 00m · Jessica · Arquivado sob Geral
Ariovaldo Umbelino de Oliveira*
O processo de grilagem das terras públicas no Brasil iniciou-se depois da entrada em vigor da Lei de Terras de 1850. Ele passou a ocorrer porque o artigo segundo desta lei proibiu a posse de todas as terras devolutas que pertenciam ao Império. Aliás, além de proibi-la, a lei criminalizava seu autor, sujeitando-o a pena de dois a seis meses de prisão, multa de cem mil réis e a reparação dos danos causados.
Dessa forma, a lei que legitimava, através de seu artigo quinto, todas as posses existentes até então, quaisquer que fossem suas áreas desde que medidas e devidamente registradas nos livros das freguesias até 1856, passava a interditá-la. Porém, isto aconteceu apenas no plano legal, pois o imaginário social que imperava na sociedade de então tinha na abertura da posse o caminho para se ter acesso à propriedade privada da terra, uma vez que o instrumento jurídico colonial da sesmaria deixara de existir no Brasil com a independência.
A Constituição republicana de 1891 transferiu para os Estados as terras públicas devolutas, mantendo sob controle da União apenas as terras das faixas de fronteira e da Marinha. Porém, nem o governo federal e muito menos os governos estaduais fizeram, através de leis próprias ou não, todas as ações discriminatórias e as respectivas arrecadações de suas terras devolutas. Este fato gerou, até a atualidade, a existência de terras devolutas estaduais e federais em todos os Estados brasileiros.
Pelos dados disponíveis no Incra, em 2003 a área ocupada pelas terras públicas devolutas era superior a 400 milhões de hectares, ou seja, quase a metade do território nacional. A metade delas, inclusive, não está sequer cadastrada no Incra. Essas terras foram, portanto, cercadas, porém “não existem” para o Estado. Quer dizer, o Estado não sabe quem se apropriou do território pátrio, legal ou ilegalmente. E mais, a legislação agrária em vigor permite a legalização apenas das posses até 50 hectares pela Constituição de 1988, e até 100 hectares excepcionalmente.
Assim, as áreas maiores do que as posses legais ocupadas não podem ser legalizadas. E, para manter o controle destas terras que não lhes pertencem, os grileiros atuaram de modo a impedir politicamente que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras sob sua jurisdição. É neste particular também que está a resistência da maioria dos proprietários de terra à reforma agrária. Ou seja, a luta pela reforma agrária desencadeada pelos movimentos sócio-territoriais colocou a nu esta estratégia ilegal das elites agrárias da apropriação privada do patrimônio público.
Dessa forma, a grilagem das terras públicas na Amazônia revela apenas uma das dimensões do problema fundiário nacional, pois nesta região brasileira estão mais de 168 milhões de hectares de terras públicas, devolutas ou não. A sua apropriação privada foi estimulada pelas políticas públicas da “Marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas, dos incentivos fiscais da Sudam durante o regime militar e, na atualidade, pelo estímulo à rápida expansão do agronegócio da madeira, pecuária e soja nesta região.
O processo de grilagem, por sua vez, iniciou-se com o envelhecimento artificial dos documentos com a ajuda dos grilos. Depois, novos recursos passaram a ser utilizados, e a estratégia foi a regularização das terras griladas através de “laranjas”, via procurações destes. Foi o período que denominei de “grilagem legalizada” e que ocorreu principalmente durante os governos militares.
Depois da Constituição de 1988, uma parte dos funcionários do Incra passou a “oferecer” e “reservar” as terras públicas para os grileiros e indicar o caminho “legal” para obtê-las. Inclusive, foi por causa disso que a Polícia Federal fez a Operação Faroeste no Pará e mandou para a prisão altos funcionários daquele órgão. Atualmente, o Ministério Público Federal move também uma ação na justiça para cancelar os “assentamentos da reforma agrária laranja” da regional de Santarém. O motivo é sempre o mesmo: a “banda podre” dos funcionários do Incra tentando legalizar a grilagem das terras públicas.
O Incra, desde os governos militares, arrecadou e/ou discriminou um total de 105,7 milhões de hectares. Até 2003, este órgão tinha destinado um total de 37,9 milhões e possuía ainda sem destinação 67,8 milhões de hectares assim distribuídos (em milhões): 4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas; 9,2 em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins; 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão.
Estas terras não destinadas do Incra estão “cercadas e apropriadas privadamente”, e os grileiros, através de seus representantes no Congresso Nacional, propuseram, e o governo aceitou, a “solução jurídica” para legalizar as terras griladas - através do artigo 118 da Lei nº 11.196/05 - até 500 hectares. Mas a ação do governo Lula em apoio aos grileiros da Amazônia Legal foi mais contundente com a MP 422, já aprovada no Congresso Nacional. Ela vai autorizar o Incra a dispensar de licitação a alienação dos imóveis públicos da União com até 15 módulos fiscais (1500 hectares) na Amazônia Legal.
Dessa forma, uma lei está revogando os artigos 188 e 191, pois este último define o posseiro como “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.
Se não bastasse esta evidente inconstitucionalidade, os grileiros das terras públicas na Amazônia Legal utilizarão também a MP 422 para regularizar a grilagem de todas as terras do Incra naquela região, através do desdobramento das áreas griladas superiores a 15 módulos fiscais em áreas com até 14 módulos fiscais. E, dessa forma, Lula entrará para a história do Brasil não como o presidente que fez a maior reforma agrária do país, mas como aquele que fez a maior regularização das terras públicas griladas do Brasil, destronando, por certo, o senador Vergueiro, autor da Lei de Terras de 1850.
*Ariovaldo Umbelino de Oliveira é professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor, entre outros livros, de “Modo capitalista de produção (Ática, 1995)”, “Agricultura camponesa no Brasil” (Contexto, 1997).Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
“MST”
Extraído do site Controvérsia.
Ariovaldo Umbelino de Oliveira*
O processo de grilagem das terras públicas no Brasil iniciou-se depois da entrada em vigor da Lei de Terras de 1850. Ele passou a ocorrer porque o artigo segundo desta lei proibiu a posse de todas as terras devolutas que pertenciam ao Império. Aliás, além de proibi-la, a lei criminalizava seu autor, sujeitando-o a pena de dois a seis meses de prisão, multa de cem mil réis e a reparação dos danos causados.
Dessa forma, a lei que legitimava, através de seu artigo quinto, todas as posses existentes até então, quaisquer que fossem suas áreas desde que medidas e devidamente registradas nos livros das freguesias até 1856, passava a interditá-la. Porém, isto aconteceu apenas no plano legal, pois o imaginário social que imperava na sociedade de então tinha na abertura da posse o caminho para se ter acesso à propriedade privada da terra, uma vez que o instrumento jurídico colonial da sesmaria deixara de existir no Brasil com a independência.
A Constituição republicana de 1891 transferiu para os Estados as terras públicas devolutas, mantendo sob controle da União apenas as terras das faixas de fronteira e da Marinha. Porém, nem o governo federal e muito menos os governos estaduais fizeram, através de leis próprias ou não, todas as ações discriminatórias e as respectivas arrecadações de suas terras devolutas. Este fato gerou, até a atualidade, a existência de terras devolutas estaduais e federais em todos os Estados brasileiros.
Pelos dados disponíveis no Incra, em 2003 a área ocupada pelas terras públicas devolutas era superior a 400 milhões de hectares, ou seja, quase a metade do território nacional. A metade delas, inclusive, não está sequer cadastrada no Incra. Essas terras foram, portanto, cercadas, porém “não existem” para o Estado. Quer dizer, o Estado não sabe quem se apropriou do território pátrio, legal ou ilegalmente. E mais, a legislação agrária em vigor permite a legalização apenas das posses até 50 hectares pela Constituição de 1988, e até 100 hectares excepcionalmente.
Assim, as áreas maiores do que as posses legais ocupadas não podem ser legalizadas. E, para manter o controle destas terras que não lhes pertencem, os grileiros atuaram de modo a impedir politicamente que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras sob sua jurisdição. É neste particular também que está a resistência da maioria dos proprietários de terra à reforma agrária. Ou seja, a luta pela reforma agrária desencadeada pelos movimentos sócio-territoriais colocou a nu esta estratégia ilegal das elites agrárias da apropriação privada do patrimônio público.
Dessa forma, a grilagem das terras públicas na Amazônia revela apenas uma das dimensões do problema fundiário nacional, pois nesta região brasileira estão mais de 168 milhões de hectares de terras públicas, devolutas ou não. A sua apropriação privada foi estimulada pelas políticas públicas da “Marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas, dos incentivos fiscais da Sudam durante o regime militar e, na atualidade, pelo estímulo à rápida expansão do agronegócio da madeira, pecuária e soja nesta região.
O processo de grilagem, por sua vez, iniciou-se com o envelhecimento artificial dos documentos com a ajuda dos grilos. Depois, novos recursos passaram a ser utilizados, e a estratégia foi a regularização das terras griladas através de “laranjas”, via procurações destes. Foi o período que denominei de “grilagem legalizada” e que ocorreu principalmente durante os governos militares.
Depois da Constituição de 1988, uma parte dos funcionários do Incra passou a “oferecer” e “reservar” as terras públicas para os grileiros e indicar o caminho “legal” para obtê-las. Inclusive, foi por causa disso que a Polícia Federal fez a Operação Faroeste no Pará e mandou para a prisão altos funcionários daquele órgão. Atualmente, o Ministério Público Federal move também uma ação na justiça para cancelar os “assentamentos da reforma agrária laranja” da regional de Santarém. O motivo é sempre o mesmo: a “banda podre” dos funcionários do Incra tentando legalizar a grilagem das terras públicas.
O Incra, desde os governos militares, arrecadou e/ou discriminou um total de 105,7 milhões de hectares. Até 2003, este órgão tinha destinado um total de 37,9 milhões e possuía ainda sem destinação 67,8 milhões de hectares assim distribuídos (em milhões): 4,9 em Rondônia; 6,29 no Acre; 20,9 no Amazonas; 9,2 em Roraima; 17,9 no Pará; 1,03 no Tocantins; 5,7 no Mato Grosso; e 1,7 no Maranhão.
Estas terras não destinadas do Incra estão “cercadas e apropriadas privadamente”, e os grileiros, através de seus representantes no Congresso Nacional, propuseram, e o governo aceitou, a “solução jurídica” para legalizar as terras griladas - através do artigo 118 da Lei nº 11.196/05 - até 500 hectares. Mas a ação do governo Lula em apoio aos grileiros da Amazônia Legal foi mais contundente com a MP 422, já aprovada no Congresso Nacional. Ela vai autorizar o Incra a dispensar de licitação a alienação dos imóveis públicos da União com até 15 módulos fiscais (1500 hectares) na Amazônia Legal.
Dessa forma, uma lei está revogando os artigos 188 e 191, pois este último define o posseiro como “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.
Se não bastasse esta evidente inconstitucionalidade, os grileiros das terras públicas na Amazônia Legal utilizarão também a MP 422 para regularizar a grilagem de todas as terras do Incra naquela região, através do desdobramento das áreas griladas superiores a 15 módulos fiscais em áreas com até 14 módulos fiscais. E, dessa forma, Lula entrará para a história do Brasil não como o presidente que fez a maior reforma agrária do país, mas como aquele que fez a maior regularização das terras públicas griladas do Brasil, destronando, por certo, o senador Vergueiro, autor da Lei de Terras de 1850.
*Ariovaldo Umbelino de Oliveira é professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor, entre outros livros, de “Modo capitalista de produção (Ática, 1995)”, “Agricultura camponesa no Brasil” (Contexto, 1997).Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico.
“MST”
Extraído do site Controvérsia.
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